quinta-feira, 25 de março de 2010

Capítulo 14- Quero amar amar perdidamente

As férias tinham acabado abruptamente, como era costume, após a euforia do Ano Novo. Tinham rumado ao Algarve, alugado uma casa a meias com um colega de Miguel- o Mário Lopes, mais conhecido pelo Mário Megabit, um crânio da informática cujo passatempo preferido era sacar filmes na net antes da estreia em Portugal. Divertiram-se à grande, até porque ele tinha duas filhas – uma feia e a outra gira, mas ambas divertidíssimas. O Mauro conseguira arrastar consigo a Cláudia de Alcácer e, por isso, a família ficara junta, caso contrário, o rapaz teria ficado em Lisboa a correr as discotecas na companhia de Picas. Depois do espumante gelado, das mariscadas e das danças estonteantes, regressaram com o ar esgazeado de quem já não dorme há dias.

Ah, ah! Quero ver esse papel! exclamou a professora de Português. Ricardo e Ana ficaram embaraçados. A professora olhou o que estava escrito, franziu a testa: Os meninos escrevem cada coisa! Que desgraça! Dobrou desinteressadamente a folha em duas partes e enfiou-a no cesto dos papéis.

Quando António entrou na sala, dirigiu-se ao cesto de papéis para deitar fora um caroço de maçã. Uma folha cor-de-rosa, dobrada em duas, chamou a sua atenção. Parecia a letra da Ana do 10º 5ª. Recolheu o papel e meteu-o no bolso rapidamente, como se estivesse a roubar algo ao mais íntimo da sua amada. O seu coração bateu mais depressa e, quando se sentou, não conseguiu concentrar-se na aula de matemática, a mão cega dentro do bolso a tentar ler o que lá estava escrito, imaginando mensagens secretas ao mesmo tempo que resolvia equações.

Foi no intervalo, atrás do pavilhão, que conseguiu abrir a folha e descodificar a mensagem.

A aliança K me dexte extá no meu bolxo.Tira-a e fica com ela!

AMO-TE IMENXO DEXCULPA.

Já te dixe K tenx K penxar antex de fazerex ax coixax.

Xim.

Max pelox vixtox ñ extáx a fazer ixo.

Eu ñ te minto +, max vaix ver como também ficax chateada.

Max ñ fico tanto e exKxo rápido.

Tou cá para ver! Vaix almoxar a caxa?

Claro!

Então ñ almoxo hoje. Tenho K guardar o dinheiro.

Para…

Para o mealheiro!

‘táx parva? Tu tenx de almoxar!

Exquexe! Eu ñ almoxo. Gaxtei o meu dinheiro e agora tenho de juntar para a minha mãe ñ dexconfiar.

Gaxtaxte o dinheiro onde?

A dar à Madú para carregar o tlm, comprei um CD, dei-te ox 50 cêntimox e lanchei e tomei o peKno-almoxo cá na excola.

Eu dou-te ox 50 cêntimox.

Ñ Kro!

Tu é K xabex! Amo-te muito.

Xe me amaxex, ñ me excondiax coixax, nem mentiax.

‘tá bem!

Poix!

Poix xim!!!!!!!!

Eu amo-te muito.

Eu ainda +!

Já comia unx ovox mexidox!

Xe eu apanhaxe a minha almofada!...

Para quê?

Para dormir!

Com Kem?

Xó ou contigo!

Qual é melhor?

Acompanhado.

Com Kem?

Contigo.

António perdeu as forças… encostou-se à parede. A sua visão ficara turva e engolia em seco para não chorar. Numa corrida, atingiu o portão da escola, desaparecendo na fria manhã de Janeiro. Tinha de chegar a casa, deitar-se na cama, tapar-se com o edredão e ficar a dormir para sempre.

Uma voz invadiu-lhe o quarto: Ei, António, fazi a cama mesmo agora, já estás desmanchar?

Gaita, a Natacha!

A empregada debruçou sobre ele os olhos russos de matriosca, aliás os meigos olhos russos de matriosca. Como é simpática a Natacha, debaixo da sua cabeleira de um louro falso.

Que se passa, António? Estás mal disposta? Queres chá?

Quero! Quero um chá para a tristeza e Florbela Espanca para lanchar.

domingo, 7 de março de 2010

Capítulo 13- Noite de paz...Noite feliz


A antevéspera de Natal fora um dia muito agitado: os preparativos da consoada, as compras de última hora, os imprevistos – uma forte constipação da D. Alice que, lacrimante, lançara um SOS à filha para que a acompanhasse às urgências.

Depois, foi a dificuldade em pôr Natacha a preparar as filhós e, em simultâneo, o menu francês que Margarida teimara em colocar sobre a sua mesa naquele ano. O que lhe valera fora o facto de o caviar e de o foie gras já virem preparados. Os blinis eram velhos conhecidos de Natacha e ela era a única a saber prepará-los.

Deus enviou-me esta mulher. Foi um sinal para mim e para a minha família!

Foi também na antevéspera de Natal que Sandra recebera finalmente notícias de Luís, o rapaz que se evaporara com a sua mota, sem dizer nada a ninguém. Luís estava… na Índia (sim, ele e a sua mota) com uma comunidade franco-belga, absolutamente convertido à sua religião e às ervas (comidas e fumadas…). A carta que recebera era curta, escrita com a linguagem consonântica utilizada em milhares de SMS, minada de K, impessoal e fria, cinzenta e monocórdica. Sandra, em choque, nem chorou- foi buscar uma fotografia do rapaz, colou-a na parede do quarto, por cima da cómoda, e dedicou-lhe uma jarrinha de cristal com uma rosa branca. Transformara-o em defunto. Era isso que ele era agora: um morto. Imaginava-o de tanga, qual Siddharta subnutrido, contemplando as coisas que o rodeavam. Pensou duas vezes onde ficava exactamente a Índia, depois dirigiu-se ao quarto de António e consultou um Atlas. Loooonnnnge! Como teria ele lá chegado? Quanto tempo teria durado a viagem? Com quem foi? Sim, porque aquilo não era viagem que se fizesse sozinho, atravessando países em permanente conflito.

Desejou então que ele nunca mais voltasse e que a libertasse daquela viuvez prematura. Ia perguntar novamente à avó o que deveria fazer, nas cartas haveria de encontrar uma solução.

Das cartas dunca se ecotram soluçóis! afiançou-lhe Maria Alice, no auge da sua constipação. Podei ecotrar-se caminhos, mas tês de escolher o teu.

Do fundo da cozinha, dava orientações a Natacha: É decessário acrescêtar aguardête. Vodka, dão, hei! Veja como a massa está elástica. Os fritos devem ficar estaladiços.

O ruído dos convivas enchia o apartamento dos Almeida. Num aparador, estendiam-se as iguarias que Margarida tinha insistido em servir naquela consoada, mais aquilo que a mãe e a sogra tinha conseguido introduzir à socapa – filhós estaladiças, rabanadas em banho de calda, bolo-rei crivado de frutos secos, uma lampreia de ovos de olhos esbugalhados à espera que a comessem…

Os Russos lambiam-se perante aquele banquete de uma festa que nunca celebravam naquele dia. O irmão e cunhada de Miguel contavam à irmã de Margarida a sua ida a Londres, havia três semanas, sublinhando várias vezes o facto de terem comprado aí alguns presentes de Natal. Deve. Deve! pensava Luísa. Já vamos ver o que trazem importadinho da China…Que pretensiosos!

Viste como ela nos olhou, quando lhes contávamos a nossa ida a Londres, João Carlos?

É surpreendente, Marina, a dor de corno de algumas pessoas! Não ligues, querida. Ainda me pergunto como é que o meu irmão casou com uma mulher com uma irmã daquelas?

Sandra entrou na sala, envergando uma túnica branca. Trazia o cabelo apanhado e nenhuma maquilhagem, o que desde logo chamou a atenção de todos.

E que me dizes à nova faceta hippie da tua sobrinha? Dá-lhe mais um tempo e ainda se torna militante do Bloco de Esquerda.

A Barbie? Nem penses… é só uma fase. Acho que o namorado deu à sola para a Índia e ela ficou assim.

Assim que a mãe a viu, correu para ela. Mas onde é que tu foste buscar este lençol branco? Vai vestir outra coisa, pareces um anjo desleixado!

Quero estar em sintonia com o ambiente espiritual do Natal, o ambiente há muito perdido, substituído pelo consumismo compulsivo das almas perdidas.

Sandra! Sou eu, a tua mãe. Não me obrigues a levar-te ao psiquiatra. Não há história de tratamentos psiquiátricos na nossa família, minha fofinha. Ao menos, disfarça, vai vestir aquela roupinha que compraste há duas semanas, please, please, please. Margarida adorava falar em inglês quando se encontrava numa situação mais dramática, como se estivesse num filme americano.

Mãe, deixa-me RESpirar que é coisa que não faço como deve ser desde que nasci, gaita! É noite de Natal e sou um anjo.

A noite da consoada estendeu-se até às duas da manhã quando Sergei rubro de álcool arrastou a alegre Natacha para o elevador. Nessa altura já o Príncipe dormia no seu canto agarrado à pantufa nova de Miguel, presente da sua sogra que, nem mesmo nesta santa noite, conseguiu livrar-se da curiosidade de João Carlos e de Marina, expectantes pelas previsões para o ano seguinte. Dinheiro. Vamos ter mais dinheiro? Vamos viajar? Trocar de carro? Maria Alice abria a boca de tédio- Não trouxe as cartas! Vão visitar-me que eu deito as cartas com calma! Mas não apareçam na terça-feira que eu vou num passeio da associação de reformados à Serra da Estrela.

Afastaram-se de Maria Alice. A velha bruxa leva o tempo no passeio. Já não há velhos como antigamente, não achas, João Carlos?

As iguarias de Margarida não tinham conseguido o sucesso pretendido e ela sentara-se triste no chão da sala, depois de todos saírem. Miguel tentou consolá-la: Deixa… as pessoas não se habituam assim a essas coisas refinadas do pé para a mão. Para o ano há mais!

A mulher suspirou. Mais??? Nem me quero lembrar disso! Valia-lhe o presente do marido: uma gargantilha liiiiiiiinda!

Que só vou acabar de pagar daqui a três Natais! Lembrou a consciência de Miguel.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Capítulo 12-Olhei para o céu, estava estrelado...

Cá estou eu de novo, enfiado no roupão em tecido polar que a avó Cidália me ofereceu no Natal passado, sentado na cadeira giratória, em frente da secretária, no meu quarto do 6º andar B, lote 32, rua da Esperança, freguesia de Massamá, concelho de Sintra, Portugal, Europa, planeta Terra, sistema solar, Via Láctea, universo. Perdido na imensidão do espaço, navegador de estrelas, sobre a cadeira giratória, à secretária de pinho cor de mel, controlo o meu mundo com esta esferográfica em forma de maçaroca que a Cláudia me deu nos anos. Para tu escreveres o teu diário, António! Para eu escrever no meu diário que estou sozinho no universo infinitamente grande. Eu descobri, Cláudia, que sou infinitamente pequeno, que podemos até nem existir: nem eu, nem tu, nem ninguém. Pensamos que existimos, porque apercebemo-nos da presença dos outros que nos rodeiam, mas experimenta fechar-te no quarto, experimenta ser a única testemunha da tua existência.

É antevéspera de Natal. Compras. Confusão. Compras. Frio. Compras. Nariz gelado sobre as dobras do cachecol.

Ontem, fui atrás dos outros comprar coisas. No autocarro, em pé, tentei equilibrar-me sem me agarrar ao varão metálico, como se montasse uma prancha de surf. Cheguei ao centro comercial algo enjoado, pensando como iria gerir os cento e trinta e cinco euros que tinha economizado. Parei em frente da minha loja preferida: a que tem à porta um urso em tamanho real. Resisti à ideia de comprar velas para toda a gente e de despachar a tarde de compras natalícias. Não, este ano teria de ser original, teria de encontrar o presente adequado para cada um e, simultaneamente, adequado para mim que o oferecia. Quando já perdia as esperanças, encontrei uma caixa de comprimidos com compartimentos para todos os dias da semana: era a cara da avó Cidália. Já a estava a imaginar a atestar a caixa de químicos para afastar a dor e, em último recurso, a própria morte. Na montra da livraria, encandeavam as capas garridas da literatura descartável: imaginei a cara de alegria da Sandra, a minha Barbie Sister, portanto resolvi não ceder à tentação - era adequado para ela, porém uma aberração para mim. Fiz bem em entrar, pois, no balcão do fundo, havia um prado florido de agendas com capas de obras pintores célebres. Apaixonei-me por elas, era capaz de ter comprado uma para cada um, mas tinha prometido a mim mesmo ser original, logo só a Sandra teria direito a uma para anotar os seus compromissos.

Na loja do lado, expunham-se vários baralhos de Tarot. Nova resistência! Seria um presente demasiado óbvio. Uma luz brilhou numa loja de artigos para o lar como uma estrela de Natal que pretendesse guiar-me. Naquele momento, senti-me um Rei Mago de manto dourado sobre os ombros, atraído pelo brilho. A diferença estava no facto de eu não ser portador de uma oferenda; eu procurava uma e… encontrei! Uma toalha redonda azul pintalgada de estrelas e de luas. Imaginei a avó Alice distribuindo as cartas sobre ela. Fugiu um pouco àquilo que pensara gastar, mas aquela pequena extravagância deu-me um gozo especial. Depois, a luz não parou de me surpreender, ziguezagueou à minha frente, levando-me às lojas mais estranhas, e, decorridas duas horas, eu era o portador (Pai Natal, nunca! Detesto essa personagem, desde que, aos cinco anos, ma roubaram da minha fantasia) mais alegre de todo o centro comercial: uma écharpe para a mãe; um livro de um psiquiatra famoso sobre jovens problemáticos para o pai; um fantástico cachecol para o Mauro não se constipar pelas madrugadas, à saída das discotecas; um osso-brinquedo para o Príncipe; uma moldura para Natacha colocar a fotografia dos filhos deixados com a avó, na Rússia, e uma garrafa de Borba para Nicolai- ele precisa deste líquido para sentir pulsar nas veias o sangue português… Comprei duas caixas de bombons para os tios, uns pin y pons para os primos.

Espero a consoada com alguma curiosidade.

terça-feira, 2 de março de 2010

Capítulo 11 - " Me gusta Badajoz"

Estava na fila desde as sete da manhã, batendo os pés na calçada para espantar o frio com a Maria das Dores, queixando-se da artrose no joelho. O senhor Manuel do mini-mercado chegou depois com a mulher a tiracolo, resmungando com o nevoeiro ao mesmo tempo que puxava a maleta com rodinhas. Só depois surgiu a D.Fátima, com o telemóvel oscilando ao pescoço, ansiosamente acenando para a amiga: “Alice, acho que me esqueci de alguma coisa”.

Da carteira?”

Não!”

Da chave de casa!

Não, está na mala!

Alice cerrou o olhar: “Ó Fátima, ri-te lá!” A outra abriu um sorriso molengão: faltava-lhe a prótese que congelara o sorriso no lavatório.

Vou a casa buscá-la num instante,” mas o autocarro já lá vinha e Fátima começou a ver a imagem do presunto prometido como prémio a desvanecer-se. Deu uma cotovelada à amiga, dizendo-lhe “tanto pior, vou soprar as bochechas para disfarçar.”

Entraram em Badajoz, ainda a cidade não despertara completamente. O autocarro despejou os turistas no centro, lembrando o guia que deveriam comparecer às 13 (hora local, entenda-se) no restaurante Gaspacho Andaluz. O ar estava limpo, mas frio, os enfeites da Navidad embelezavam as calles. As idosas invadiram os armazéns Extremeños, na esperança de uma pechincha – umas pantufas quentinhas, roupa interior de calidad, enfim, algo que que pudessem carregar para casa e servir de presente de Natal daquele ano. Impossível. Tudo lhes parecia pesado para as magras pensiones de reforma. Afinal, que graça tinha ir a Badajoz e não poder miercolar como qualquer espanhol? Saíram, correndo, na esperança de encontrar uma tienda de caramelos de piñones e tabletes de torrón. Experimentando o portulês atrevido, abordaram um velhote:

Mira, donde podemos comprar caramilhos?

Buenos dias al menos, guapas. Van por la calle Morales e encontraran una tienda com todo isso. Pero no comprendo la fixacion de que ustedes tienen com los caramelos! Y tu, sien dientes, como vas a hacer para comer el torrón? Ah, ah!

Descaradon. Miete te com tu irmana, velho nojento!”

Alice livrou Fátima de uma segunda Aljubarrota e foram calle acima à procura da tienda, quando um cheirinho a churros lhes invadiu as narinas. Cinco minutos depois, estavam sentadas a molhar os laços fritos estaladiços numa verdadeira papa de chocolate caliente. Daí até à hora combinada foi um instante, só dando tempo para se abastecerem com dois sacos de quilo de caramelos e uma caixa de torrón cada uma.

Com os pés inchados da viagem, apressaram o passo até à calle de los Doblados, entrando pela porta do restaurante em cuja entrada, já atravancada por dezenas de sacos de caramelos, torrones e chouriços, os esperava uma mesa luxuosa com tapas de toda a qualidade que foram petiscando até à hora do almoço e guardando num saco de plástico dissimulado na mala de mão.

Fátima não conseguiu livrar-se de um pedaço de polvo em salada e mastigou-o todo o dia com as gengivas nuas dando a impressão de que mamava em seco, até que o atirou sorrateiramente para uma jarra de flores que alindava a sala onde foi feita a demonstração do produto: um colchão fantástico anti-ácaros, anti-fungos, anti-cheiros, anti-nódoas, anti-fogo,anti-artroses, anti-reumatismos, anti-escaras, anti-rugas… tão anti que até se tornava anti-pático, mas era lindo, com o forro em pérola… confortável como as nuvens, firme como uma rocha e nunca se deformaria. Vinte anos de garantia- ora, isso ultrapassaria a esperança de vida de qualquer um dos excursionistas. Os velhos começaram a olhar desconfiados o homem que fazia a demonstração e que os tinha ajudado a deitarem-se, um a um, naquele maravilhoso leito.

O outro acrescentou: “Mas podem deixá-lo de herança.”

A-ah! anuíram os velhos, assim ainda vá!Mas deve ser muito caro!

O seu preço real, em qualquer loja da especialidade, é de 1700 euros, mas para uns senhores tão simpáticos que nos acompanharam até Badajoz, 999 euros.”

Mesmo assim…se eu tivesse 999 euros…”-disse uma.

Não pode ser nada, tenho de mudar as lentes dos óculos!

Isso dos euros é o quê? Quanto é que isso dá em contos de réis?”

Para aí uns duzentos e tal?”

Escudos?”

Contos, porra!

O demonstrador fazia um bailado com os braços: “Nada de alarmismos. A nossa empresa tem solução para tudo. Previmos a vossa situação financeira e criámos um crédito especial: o crédito sénior.

A-ah!

Poderão pagar o nosso colchão em 36 prestações mensais de 49.90€.”

Mas quanto é que isso dá em contos?

Mas quando é que a gente se vai embora? É que eu quero estar em casa à hora do Preço Certo!

Mas não havia um lanche primeiro?”

Ah, não! E depois como é que nós levamos o colchão para casa?

Não há problema, a nossa empresa levará o colchão a casa sem qualquer custo. Aproveitem. Só necessito de uma assinatura e de um cheque.

De um queque? Eu sabia que havia um lanche qualquer. Li no folheto.”

“A senhora, que tem ar de sofrer da coluna, já pensou no que pouparia em medicamentos?”-inquiriu o homem, apontado para a D.Alice.

Primeiro quero ver o presunto!

É verdade, onde está o presunto?

Sim, onde está a oferta?

Fez-se silêncio. Um velhote da última fila levantou-se, abanou a cabeça e disse: “O meu pai não vai gostar nada disto e nunca mais me vai deixar sair.

O demonstrador do colchão oscilou, ficou muitíssimo pálido e caiu sobre ele (o colchão, claro!). Nunca mais aquela empresa enfiou os simpáticos folhetos de viagens baratas nas caixas do correio do bairro da D.Alice, e os velhotes continuam a dormir nos seus modestos colchões, na companhia dos ácaros, os únicos seres que nunca os abandonam e que lhes aturam as caturrices.

Ó amigo, então é agora que vem o lanchinho?


terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Capítulo 10-…vamos ao Vira, ó ai, que o Vira…

António, anda comigo ao hiper! Despacha-te, tem de ser na hora de almoço.
Qual seria a pressa do pai? Encolheu os ombros, pegou na sua bolsa e pô-la a tiracolo.
Era a avó, ou melhor, o presente da avó. Tinha de ser um conjunto de ferro de viagem e secador de cabelo que ela lá tinha visto e que usaria contente num passeio com as amigas.
O jipe deu duas voltas ao primeiro piso do parque coberto. Está ali um! Não é um espaço para deficientes. Dois espaços para deficientes? Mas quantos deficientes… Este país terá assim tantos que justifique? Ah, finalmente! Merda, uma passadeira. Outra vez deficientes… Mas o que andam todos a fazer no hiper numa segunda-feira, à hora de almoço?
Num recanto, um carro fez marcha-atrás, voltou à frente, recuou de novo. Gajas ao volante! Quantas manobras precisa de fazer para tirar aquela amostra de carro dali?
É o pilar, pai! Há um pilar à esquerda.
Pilar, o caraças, pá! Lá vai ela, pronto!

Quando o jipe entrou, os faróis iluminaram uma porta metálica. ENTRADA E SAÍDA DE MERCADORIAS-PROIBIDO ESTACIONAR.
Que se lixe, só vamos demorar quinze minutos!
Correram para a loja, dirigindo-se à secção de pequenos electrodomésticos. Encontraram logo a caixinha com o conjunto de viagem. Espectáculo, António, menos de três minutos!
Posso ir comprar um CD gravável?
Claro!
Ainda tinham tempo.
Entraram no inferno. Sons e imagens saltitavam psicadélicos, enlouquecendo os sentidos. Som dolby digital. Surround!
Sabes quando é que ouvi pela primeira vez o som surround? Quando vi o filme O Terramoto. Tinha a tua idade. Até as cadeiras estremeciam. Hoje, temos o surround em casa.
Fazem estremecer os candeeiros dos vizinhos.
As construções não prestam. Olha ali o DVD do TITANIC! Vou levar, a tua mãe vai agradecer-me… e o ÚLTIMO TANGO EM PARIS, um clássico.
É um musical?
Hã? Nada! Foi um estoiro quando estreou em Portugal. Vem num pacote pro-moção com o JESUS CRISTO SUPERSTAR. Levo? Levo, depois posso não encontrar.

Ouviu-se um pregão noutro sítio.
O que é isto? A feira dos enchidos. Vamos num instante, tenho de comprar umas morcelas para grelhar.
Seguiram o cheiro da carne fumada. Outro inferno –odores e música popular embriagavam os sentidos.
Pata Negra em promoção. Vou buscar um naco. Não gostas, António?
O António gostava, adorava, mas o ponteiro do relógio já avançara quinze minutos…
Está bem, vai andando para a caixa. Está ali uma só com uma pessoa.
A operadora de caixa sorriu: Tem cartão CompraContente? Não, não tinha. As compras iam deslizando pelo tapete. 180 Euros e trinta e dois cêntimos.
Entregou o cartão Multibanco, digitou o código. Acesso negado? Experimentou três vezes. Acesso negado.
Bem, o que será isto? Ainda há pouco paguei na bomba de gasolina e não houve problema.
Tentou uma quarta vez, franzindo a testa para o olhar dos clientes que se acumulavam impacientes.
Vou ligar ao banco. Não pode suspender a compra para não empatar?
Poder posso…
a rapariga mostrou-se contrariada.
António disfarçou, observando as lojas do centro comercial
Está, Antunes? Estás porreiro? Ó pá, estou numa situação chata. Vim às compras e não consigo pagar com o cartão. O número? 2500532827. O quê? Ai, não? Ouve, ó Antunes, não me podes desenrascar 200 euros para liquidar isto? Já sabes que não há problemas (em voz mais baixa) com os juros. Obrigado, pá! Tenho que esperar dez minutos? OK, obrigadinho, pá. Um abraço! Voltou-se para a empregada: Sabe o que é? Paguei a minha viagem à Sierra Nevada e levantaram-me o cheque antes da data combinada.
Quando o problema ficou resolvido, correram para o jipe.
Ó pai, não sabia que íamos para a Sierra Nevada!
Nem eu! Mas o que é que aquela gaja tinha a ver com as minhas contas?
Isso ainda lhe sai caro!
Porquê? És tu que pagas? Quem é que trabalha?
Sim, mas… ó pai, o jipe estava no -2?
Sim, -2 azul C12. Tenho boa memória!
Não!
Não tenho?
Não está! Desapareceu.
Então, se calhar, está no -1.
Subiram as escadas a correr e verificaram que, naquele piso, os pilares estavam pintados de vermelho e de verde.
Roubaram-me o carro! Não acredito! Isto há-de ter um guarda! Está aí alguém? Ó senhor!
Um jipe Teneré? Vi. Acabaram mesmo de rebocá-lo.

O parque dos tristes rebocados ficava longe, pelo que tiveram de apanhar um táxi. O António perdeu as duas primeiras aulas e Miguel ficou branco quando tentou pagar a multa com o Multibanco e não conseguiu. Por sorte, a mulher tinha prolongado a hora de almoço para fazer umas compras ali perto. O preço da multa dava para comprar metade de uma pata negra…
As compras nos hipermercados cansam qualquer homem, sobretudo quando o cartão de plástico começa a perder a cor. O telemóvel tocou.
Sou eu, filho!
Oh, D.Maria Alice, que tarde desgraçada!
Sabes que cartas do Tarot saíram para ti? O Eremita, a Morte e o Louco.
E…

Corres risco de suicídio! Era só para te avisar! Não queiras deixar a minha filha viúva.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Capítulo 9-cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,

cão de olhos que afligem,
cão-problema...

Sai depressa, ó cão, deste poema!

Alexandre O'Neill


Nasci numa quinta de um amigo de Miguel. Pertencia a uma ninhada de seis e ainda nem brincava, quando me vieram buscar. Aconchegado num cobertorzinho desbotado, nos braços de António, fui baptizado de Príncipe. Nesse dia, percebi que havia mais mundo para além do caixote onde acordara para a vida, debaixo das lambidelas da minha mãe, a cadela Tora. A família Almeida adoptara-me facilmente, numa época em que era moda ter um boxer.
Gozei a minha infância até ao tutano, roendo sapatos, cabos eléctricos, o tarot de uma avó, a dentadura da outra, o batom preferido de Sandra, o telemóvel de Mauro… não havia jornal que me educasse, nem chinelo que me emendasse.
Foi deste modo que aprendi a ler o suplemento de Economia e a especializar-me em Finanças. Suponho que, nas redondezas, não haja mais nenhum cão que o faça, o que me traz em permanente estado depressivo por não poder trocar impressões com ninguém. Assim, tive crises de uivos permanentes que me atiraram para o divã de um psicólogo de animais, duas vezes por mês durante um ano, no consultório do qual esperava impaciente a minha vez, entre uma jibóia albina claustrófoba e um papagaio que mergulhara numa tristeza sem fim quando os donos o esqueceram em frente à TV que transmitia os debates da assembleia sobre o estado da nação. Ia pela mão do Mauro ou da Sandra, de trela tristemente pendida, em passo lento, desprezando até os postes mais fedorentos do caminho.
Um dia, acordei e surpreendentemente já não sentia aquele aperto no estômago. A única coisa que me surgia na memória era a imagem fulgurante da Betsy, a cadelinha do 34. Estes ataques só me passaram ao aperceber-me da sua existência, ao passear à noite com a mãe, uma velha boxer babosa que tem artroses na anca. Uma destas noites, quando regava a base de um outdoor com propaganda eleitoral já esquecida, vi a Betsy ao longe, atrás do presépio do parque dos Plátanos. Não era possível! A Betsy a fazer o seu chichi entre a vaquinha e o S.José.
Não é possível,Betsy!
Teve que ser mesmo aqui, Príncipe. Tu sabes como eu adoro ouvir o líquido a escorrer pelo metal das sarjetas, mas não fui a tempo. Acreditas em mim?
Oh, Betsy!
Oh, Príncipe!
Oh, Betsy, Betsy!

E foi mesmo ali, perante o olhar esgazeado do burro que tudo aconteceu. Olhei o cenário desta minha cena e aproximei-me do Menino, ganindo baixinho desculpas de cão desavergonhado. O Bebé manteve os bracinhos enregelados virados para o céu e não parou de sorrir.
E, pronto, adeus taxas de juro iô-iô, contas públicas tenebrosas, défice incontrolável, crise mundial aguda. O bom do Príncipe voltara a eu mesmo. Eu era outra vez o boxer traquinas e espertalhão. Resolvi comemorar, comendo os bifes do jantar que descongelavam sobre a bancada da cozinha. Carreguei com a pata no pedal e depositei ecologicamente a embalagem de plástico bem lambida no caixote amarelo da reciclagem. Fui de tal maneira eficiente que a minha dona chegou a duvidar da existência da carne.
Como genuíno cão que sou, adoro todas os meus donos, mas tenho uma predilecção pelo António, o único que fala comigo como se eu fosse gente. E eu oiço-o atentamente, ora de orelha caída ora de orelha arrebitada, oscilando lateralmente a cabeça e babando-me sempre. Tudo o que faço tem consequências positivas. Até o osso de borracha, que consegui enfiar naquela terrina de loiça onde eles fazem chichi, nos trouxe, pela mão do canalizador, a família russa que salvou esta casa do caos doméstico, reanimando a qualidade das refeições e da limpeza. O que não faço ou o que tem geralmente consequências negativas é-me atribuído injustamente. Qualquer objecto que desapareça nesta casa de loucos é o Príncipe que esconde. Não é verdade! A única maldade que faço é tirar do saco do Expresso o suplemento económico e enfiá-lo imediatamente no recipiente azul para que ninguém adoeça como eu. E nem os aborreço uivando ,quando olham para a televisão, embevecidos perante a imagem do primeiro ministro eleito com o seu voto.
Este homem é chiquíssimo. Olhem só para a forma como lhe assenta o fato! É impecável, podia até ser um actor de cinema. Impossível! Até a Betsy diz que gostava de tê-lo como dono, que lhe lembra o homem da publicidade às máquinas de expresso com cápsulas. Como dizem os Yorkshire Terrier do 53: Disgusting!

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Capítulo 8- “Não vazes tantas vezes vozes rente ao vento

E não escutes os pássaros nem mesmo o mar
Não oiças nem sequer o vento se soprar
Ouve o tempo passar escuta a sua voz
Pois o tempo tem voz o tempo fala


Fechou o livro de Ruy Belo, pegou numa folha de papel e começou a garatujar:
Chamo-me António e todos julgam (até eu, às vezes...) que fui trocado na maternidade, de tal forma me afasto da minha família que olha para mim como se fosse um alien... à excepção da avó Alice que vê em mim uma encarnação de Salazar, mas essa também não respeita os parâmetros de normalidade do meu agregado familiar.
Sete horas. O despertador arranca-me de um sonho luminoso, de uma cena em que escalo uma montanha com a Ana do 10º 5ª. A casa adormecida no silêncio dos quartos vai-se enformando nas paredes difusas dos meus olhos ensonados. Tomo duche calmamente e atiro-me a um pequeno-grande-almoço (flocos com leite, um croissant com fiambre e queijo, uma chávena de café e uma maçã). Quando já estou a acabar, toca o despertador dos pais. Resmungam os dois, fazem o jogo do empurra para ninguém ser o primeiro a levantar-se e ficar mais dez minutos na cama. Começa o barulho, não o barulho testemunho de vida, mas tão-só o ruído irritante da rotina a vibrar no cristal dos meus tímpanos.
Vou acordar a Sandra, contudo a estrela da moda, qual bela adormecida, só despertará ao ser beijada por um príncipe que lhe habita os sonhos e lhe compra roupas de alta costura em lojas parisienses de avenidas que ela nunca viu.
Toca o despertador do telemóvel do Mauro. Toca sem desesperar (é a sorte das máquinas) durante cinco minutos. Só um morto resistiria tanto tempo ao toque de THRILLER , mas não creio que ele se perca em sonhos como a Sandra. Acho que ele está mesmo morto quando dorme, completamente apagado, o que condiz na perfeição com a vida que leva. O Mauro bate o recorde da toilete matinal (nove minutos, quarenta e nove segundos e vinte e dois centésimos) e bebe sempre iogurte líquido, porque é mais rápido. É o primeiro a sair, mas raramente chega à porta da escola. É um mistério o seu destino, àquela hora só os cafés entorpecidos pelo cheiro a lixívia estão abertos.
Depois saio eu. Vou a pé, passo pela casa do Tiago, depois pela da Vanessa e, quando temos o nosso grupo reunido, rumamos à Secundária Flor de Magalhães, um conjunto de pavilhões maquilhados com graffitis de péssimo gosto. É feia, é fria, mas é a minha segunda casa (terceira, se contar com o apartamento na Costa!).
Não sou só eu que gosto dela, o Director, também. No dia em que foi parido o Ranking das escolas, ele chorou. A nossa não estava no grupo das “cem mais”... Eu defendo uma teoria própria. Acho que o Mauro e o seu grupo foram os verdadeiros culpados das médias desastrosas da escola. Esta teoria não é partilhada pelos meus pais que atribuem a culpa aos professores, nem pelos professores que juram que os culpados são os pais. Na opinião da Cátia, uma barra em astrologia, a conjuntura astral dos meses de Junho e de Julho foi a verdadeira responsável pelo fracasso dos exames nacionais. A avó Cidália diz que a culpa é do Ministro da Educação que permite que se saia da primária quase tão analfabeto como se entrou. A mulher-a-dias, D.Natacha, acha, em português ainda mal limado, que há um mal social que precisa de ser alterado, uma espécie de agonia dos valores mais básicos.
Abro a janela e evoco o ar fresco da noite, nada me traz respostas, só uma brisa envergonhada agita as cortinas. Do outro lado da rua, o espelho dos prédios reflecte-nos até ao infinito. Quantos Mauros, quantas Sandras se movem por detrás das varandas despidas de flores? Quantas mães chegam arrastando os sacos inchados do supermercado? Quantos pais protestam no trânsito, escapando à angústia pelo bocal do telemóvel numa conversa inconsequente, flutuando nas ondas hertezianas sobre os tejadilhos como almas penadas? Quantas avós Cidálias torturadas com medo da morte e ainda com mais medo da vida? Quantas avós Alices olham para além do horizonte nas cartas, tentado alcançar o futuro, sem sequer ter agarrado o presente? Quantas Natachas nos limpam os vidros destes espelhos? E os Príncipes? Quantos Príncipes esperam por nós à porta para os levarmos à rua e desentorpecerem as patas rígidas de uma inactividade imposta? Quantos?