terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Capítulo 5- “Adeus, planeta ! adeus ,ó lama!


Que ambos nós vais digerir,
Meu coração, a Velha chama,
Meu coração, a Velha chama:
Basta, por Deus! Vamos dormir...”

Maria Alice Cravo fechou o livro de António Nobre com um suspiro, levou a mão direita à testa, encostando nela a cabeça. Nessa altura, a campainha tocou. Quem seria? Habitualmente não recebia visitas às onze da manhã.
É a Sandra, avó!
Ah, era a sua neta! Lembrou-se da avó! Deve precisar de dinheiro para ir ao centro comercial...
A rapariga entrou e atirou-se-lhe para os braços. Está desesperada. Não, não tem ar de quem quer ir às compras...
Então, o que foi? Queres um chazinho?
Tens Ice Tee de Manga? Prefiro.

A neta contou à avó o que a apoquentava, pedindo-lhe, depois, para deitar as cartas.
Sabes que eu não faço isso para a família! Maria Alice tinha pavor de descobrir o mal a descolar-se das cartas e a agarrar-se à pele dos seus. As suas amigas e conhecidas eram bem-vindas. Desvendava-lhes o destino, traçava-lhes os caminhos a seguir na penumbra da sua sala de jantar, sobre a mesa redonda. Acendia-lhes uma vela com a forma de uma estrela, criava-lhes o clima. Elas adoravam e passavam uma tarde em beleza.
E a tua mãe? Ela sabe que cá vieste? Não estou nada satisfeita convosco. Esteve cá ontem a prima Zezinha e vocês não a vieram ver. Há anos que não se vêem... Desde que ela casou com o Pablo e foi viver para Sevilha... Já está separada, vê lá tu! De Espanha, nem bom vento, nem bom casamento...
Ó avó, as cartas... por favor...
Maria Alice arrancou um suspiro do peito, baixou os estores, acercou-se da mesinha tapada com uma toalha negra e começou o ritual.
Então vamos lá ver o que se passa com esse Luís. Desenhou a cruz céltica com as cartas.
Humm...
Então?
O caso parecia um tanto obscuro, mas Maria Alice disfarçou. Vejo uma grande distância entre ti e esse rapaz. Terra e água! Ele procura libertar-se…
De mim?
Não diria isso. Procura libertar-se de algo mais grandioso…
Pronto, já sabia que a avó ia usar esta fuga para comprovar a sua teoria de que o Luís é um drogado inconsciente.
Oh,oh! Eu não disse nada. És tu que estás a falar do assunto.
Mas não é verdade! Os mais velhos pensam sempre o pior dos jovens só pelo facto de serem diferentes dos outros.
Não te posso ajudar, se não queres ver.
Juntou as cartas contrariada.
Desculpa, avó! Amanhã telefono-te, pode ser que já tenhas uma ideia mais precisa!
Amanhã? Amanhã de madrugada, vou a Badajoz!
Outra vez?
São só 25 € e ainda vou ganhar um presunto.
De plástico?
Verdadeiro! Eu trago-te uns caramelos…
Sandra soprou um beijo à avó e evaporou-se.

Capítulo 4- Ai flores, ai flores do verde pino




Pelo amor de Deus, se alguém se põe assim a falar com as flores, ainda por cima um rei! pensou a Sandra.
Ó s’tora, não percebo nada destas coisas. Olho para isto e não vejo nada. É como se tivesse um muro à frente.
Um telemóvel vibrou sobre a sua mesa. Está bem, está bem, ela sabia que não era permitido, mas o que poderia fazer? Estava à espera de uma mensagem da Cátia do 10º 7 que ficara de investigar onde parava o Luís que, havia dois dias, não aparecia, nem dizia nada. Desligou o aparelho perante o olhar fulminante da professora e tentou entender a miúda que se dirigia às flores do verde pino, uma pateta qualquer, talvez pedrada, talvez bêbeda, mas com um problema idêntico ao seu: também ela esperava notícias do amigo.
Quando acabou a aula e leu a mensagem da amiga, ficou tão apalermada como perante a cantiga:
Luis n. ta lado nnh pais preokup.
Que cena! Onde se terá metido aquele gajo? Vou procurar o Tótó. Dirigiu-se à sala multimédia. Lá está ele pendurado na Internet!
Puxou o cabelo do irmão.
Tótó, viste o Luís?
Qual Luís?
Qual Luís?! O Luís Reis!
O que tem uma Kawasaki?
Iá, qual havia de ser?

Ah, esse... não afastou os olhos do monitor. Estava a pesquisar para Técnicas Laboratoriais de Biologia. Ah, sim! Vi-o. Vi-o há dois dias.
Pois é, ninguém sabe dele desde anteontem.

Oh, mana! Isso é um problema? Se calhar foi dar uma volta. Ele já deve estar farto das tuas parvoíces, mana. Quem é que aguenta? Só eu que sou teu irmão e não te posso ignorar.
É que nem os pais sabem dele!
Nunca sabem, maninha. O que queres que eu faça?

Investiga. Vê se consegues contactar o Clube Motard de Confins-de-Baixo.
Ok, mana. Eu digo-te alguma coisa pela hora de almoço.
Saiu a correr em direcção ao portão da escola. Já não havia clima para assistir ao resto das aulas.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Capítulo 3- Eles não sabem, nem sonham...

António Gedeão? Esse bacano não era locutor da Antena 3? Eh pá, desculpa, dói-me a cabeça, parece que andei a atirar com ela contra as paredes. Ontem, mandei uns shots; a partir do segundo deixei de conseguir contar, minha. Vais às aulas? Eu? Tenho lá pachorra para essas cenas. Afastou um pouco o telemóvel do seu ouvido direito. Encalhado no 12º ano, qual navio à espera de melhor maré, ia à escola às vezes, conseguindo iludir o Director de Turma com justificações que uma tia de uma amiga surripiava do balcão da recepcionista de uma policlínica onde trabalhava a dias. No ano que corria, já tinha sofrido uma entorse, duas dores de dentes, uma indigestão, um esgotamento (esse foi verdadeiro, embora inexplicável...), contraído uma gripe e esvaziado numa intoxicação alimentar. Nunca reprovava por faltas, nunca anulava a matrícula. Era um resistente, mas recusava-se a lutar, à excepção daquela cena à porta da discoteca CABUL, onde dera um valente murro ao porteiro que lhe retribuiu com algo parecido com uma matraca e que o deixara com duas costelas partidas.
No meio da confusão, uma pedra atingira o pára-brisas do jipe do pai. Perante o duplo acidente, hesitante entre os dois caminhos a seguir (o hospital ou a oficina) e ciente da paixão que o pai nutria pelo carro que adquirira havia um ano e que continuaria a pagar por mais quatro, telefonou ofegante ao Manel João cujo tio tinha uma oficina em Carenque.
Ó meu, onde andas tu? A estudar? ‘Tás com febre, pá. Mete-te num táxi e vem ter comigo a Alcântara.
Uma hora depois, Manel João encontrou Mauro sentado sobre os fragmentos de vidros, olhando as estrelas pelo ecrã do pára-brisas.
Fizeste-a bonita, pá , o teu pai vai fazer-te em merda.
Ai, cala-te e leva-me à oficina do teu tio.
São três da manhã, o gajo está a dormir. Não queres ir antes ao hospital?
No hospital não têm vidros. Entra e cala-te.

O vento frio da noite assobiava dentro do jipe, despenteando-os e provocando novelos de um barulho ensurdecedor. Ligaram o rádio e puseram o volume no máximo para abafar o ruído. Às três e quarenta, entravam em Carenque e, pouco depois, estacionavam à porta de uma oficina em cujos portões estava escrito em letras enormes e irregulares DINOFICINA: MECÂNICA E BATE-CHAPA. O tio do Manel, que morava no andar superior, apareceu à varanda após duas buzinadelas.
Que brincadeira vem a ser esta? Não deixam um gajo dormir.
Ó tio, chegue cá abaixo, que estamos enrascados.
Passados cinco minutos, o homem desceu, envergando um fato de treino com o emblema do Benfica do lado esquerdo, mesmo sobre o coração.
Vocês querem um pára-brisas? Vocês julgam que eu tenho uma fábrica de vidro dentro da oficina? Isto é preciso encomendar...para um carro destes talvez demore dois ou três dias...ou então vais de manhã ao concessionário. Oh, porra, amanhã é domingo!
Mauro caiu fulminado no chão, acordando depois no sofá da sala do tio do amigo.
Acho que estou a morrer. O gajo furou-me o fígado, de certeza. É melhor morrer, assim o meu pai já não desatina comigo.
Aguenta-te, pá, eu vou ver se desenrasco isto.

Pegou no telefone.
Arnaldo, boa-noite, pá, pois é, desculpa ligar a esta hora, mas é uma emergência. Ainda trabalhas naquele armazém de peças... sim? Pois, olha, precisava de um vidro pára-brisas para o Rotaruki Tenerê . O quê? Vem de onde? Da Coreia? Não me lixes, Arnaldo. Vai tu, Arnaldo, vai tu!
O tio do Manel não parava, andava de cá para lá. Não... agora era uma questão de honra. Não ia deixar um moribundo de costelas partidas, um amigo do sobrinho, sangue do seu sangue, sem o mínimo de apoio.
Vai ser um risco, pá, eu não gosto de me meter nestas coisas, mas é uma emergência. Pega no telemóvel, desta vez. Tóni, estás porreiro? Continuas na merda, filho? Preciso de um material... Auto-rádios? Quem é que quer isso? Acorda! Onde andas tu? No Algueirão? Corre-me isso, pá, vê se me arranjas um pára-brisas de um Rotaruki Tenerê. Usa a cabeça, filho, usa essa mona impregnada em heroína, filho! E não me tragas um jipe inteiro que eu não quero problemas. Ouviste? Vê lá as companhias, também. Ah, estás com mais dois manfios? São teus primos? Melhor, eles dão-te uma mãozinha, que essa merda ainda é pesada.
Pelas cinco e quarenta da manhã, a Dinoficina recebia directamente das mãos do Tóni e dos seus dois primos um pára-brisas impecável, ainda com a caixinha da Via Verde colada, mais os selos costumeiros. Foi trabalho de Mauro e do amigo retirá-los e substitui-los pelos que tinham ficado agarrados aos fragmentos de vidro encontrados no chão do jipe. Ficou a brincadeira em cento e cinquenta euros (uma pechincha, segundo o tio de Manel João, e nem valia a pena discutir).

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Capítulo 2- Triste desdentada escura,
Quem me trouxe a tais mazelas!
Ó gengivas e arnelas,
Deitai babas de secura;
Carpi-vos, beiços coitados,
Que já lá vão meus toucados,
E a cinta e a mantilha…

Gil Vicente, Pranto de Maria Parda

Se o seu chefe adivinhasse que usava prótese havia dois anos, nunca poderia ter corrido ao Shopping de Cascais a comprar um casaco lindíssimo que estava em promoção. A pretexto de ir ao dentista ao princípio da tarde, escapou-se a queixosa, com a bochecha direita exageradamente retocada com blush, maquilhando o resultado de uma infecção. Já matara quase toda a família para poder usufruir de uns pequenos feriados, agora os estratagemas teriam de mudar. Havia a necessidade de inovar e com este maravilhoso pensamento atravessou o átrio da Câmara, cruzando-se com o senhor Almendro que, desde que solicitara uma licença de construção (havia três anos e dois meses), fazia, em vão, uma visita quinzenal à edilidade de Confins-de-Baixo.
Só respirou fundo quando se sentou no carro e com um toalhete eliminou a falsa bochecha febril. Respirou fundo, quando tocou o volante e uma flecha de remorso lhe atravessou a consciência: recusara emprestar o carro ao Miguel, o seu legítimo e fiel (???????) marido, aquele a quem jurara amar e respeitar, na saúde e na doença, tooooooooooooooooooodos os dias da sua vida. Que se lixe! Ele é homem, pode muito bem andar de comboio; os homens têm menos hipóteses de serem assaltados. E, depois, quem o mandou ir para Alfama com o jipe? Aliás, o que ele lá foi fazer é para mim um mistério.
Meteu-se no IC19, ligou o telefone e começou orientar o jantar.
D.Ana, comprou as costeletas? O quê? Não chegou como? Só deu para três? Mas somos cinco... Tanto pior, fazem-se uns ovos mexidos. Não, não faça esparregado! Carregue no puré de batata. Ainda há um resto de sopa no frigorífico...Já não? Comeu-a o Mauro ao almoço? Tanto pior! Em duas horas estou em casa. Se estou na Câmara? Onde queria que eu estivesse? O ruído é do computador. Estas máquinas não se dão com os telemóveis.
Ao chegar a Ranholas, o telefone tocou.
Por onde ando? Por onde quer a mãããee (pela entoação dada à palavra, tratava-se da sogra) que ande, com esta pilha de papéis à minha frente? Estou a precisar de reforma... Cansada destes serviços públicos... Sim. A Zezinha está em Lisboa por dois dias? Ah, quer ver-nos? Hoje? Jantar? Merda! Largou o telemóvel como se este estivesse a arder. A Brigada de Trânsito!
Tomou um ar pesaroso. Efectivamente estava ao telefone, senhor guarda. Tocou e eu atendi. Eu sei, eu sei que não devia, mas veja o senhor, a minha sogra teve um AVC há uma semana (quem dera que fosse verdade, assim não estaria agora em apuros, diabo da velha!), estou sempre à espera de notícias... (conseguiu deitar uma lágrima) e agora o meu marido ligou-me para me informar da sua morte, da dela, claro! Estava destroçado, coitadinho. O guarda olhou-a condescendentemente, coçou a orelha direita e disse algo sobre as atitudes pedagógicas da polícia. Deus lhe dê saúde, senhor guarda, boa tarde. Acelerou devagarinho em direcção ao Linhó, produzindo um grande suspiro ao passar em frente da prisão.
Finalmente no parque de estacionamento do Shopping.
Olha um lugar, olha um lugar! Ecoou uma buzina nas sombras do parque. De onde me saiu aquele, agora? Que está à espera há dez minutos... Desgraçado, a aproveitar-se de uma pobre mulher.
Começou o carrossel à procura de um espaço. Mas o que é que esta gentinha anda a fazer à hora de expediente? Palavra de honra que não entendo os horários de trabalho desta... finalmente um lugar... um pouco apertado à frente, mas serve. Desligou o carro, porém a porta do seu lado só abria dez centímetros. Não acredito! Passou para o lugar do lado e ficou com a meia presa na fivela da mala. Quando saiu do carro, uma malha imensa nascia num buraco acima do joelho e ameaçava desaguar já no tornozelo. Acelerou o passo, procurando a primeira loja onde pudesse comprar umas meias. A pressa levou-a a comprar uns collants demasiado pequenos, de forma que verificou enraivecida, no cubículo dos sanitários (nome das casas de banho em todos os centros comerciais…), que a extremidade superior das meias só tapava três quartos das nádegas e a inferior ficava a meia dúzia de centímetros do fundo das cuecas, o que lhe travava o passo. Felizmente, o casaco mantinha-se em promoção. Estava-lhe ligeiramente apertado, mas isso até era um incentivo à dieta. De quem teria eu herdado estas mamas, Nossa Senhora de Fátima? Sim, porque, na cintura, fica lindamente. Passados dez minutos já estava no saco o lindo casaquinho de promoção (399 Euros). O quê? perguntou-lhe Miguel. 399 Euros. O quê? 399 Euros. O quê? 399, estava com 35 por cento de desconto e escusas de estar para aí a tentares passar por poupado. Eu precisava de um casaquinho. Eu pergunto-te quanto é que gastas em bilhetes para ires ver o futebol? Hã? Para veres um clube que não ganha o campeonato há anos-luz, rodeado de broncos a comer sandes de coiratos e amendoins rançosos.
Desculpe, minha senhora! Eu sei que a senhora nasceu em berço de oiro, por isso devia ter casado com um príncipe, um PRÍN-CI-PE !
Num salto, o cão chegou à sala. Olhou para os donos, mas nenhum lhe ligou. Ia jurar que ouvira chamar pelo seu nome…

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

DITOSA PÁTRIA - novela suburbana- Cap.1



  • Agradecimentos:
    .A todos os meus amigos que desapareceram sem deixar rasto. Oxalá estejam melhor longe de mim!
    .Ao Africano que, saindo da sua mão, chocou comigo frontalmente e, depois, foi buscar os documentos do carro a casa para não mais voltar.
    .Aos distribuidores de publicidade que me entopem a caixa do correio.
    .Ao governo que tira com uma mão para tirar ainda mais com a outra.
    .Aos jornais televisivos que me servem cadáveres ao jantar, acompanhados de guerras sem fim, violência doméstica, crimes sexuais, negligência médica, vigarices várias, enfim, matéria suficiente para encenar os meus pesadelos.
    .A todos os senhores que passeiam os seus canídeos pelos passeios e parques da cidade, encerando as calçadas com excrementos de variadas formas e consistências, e que me obrigam a uma ginástica suplementar que me queima algumas calorias.
    .A todos os “arrumadores” que actuam nas zonas de parquímetros e a quem pagamos mais do que à própria máquina. Obrigada também pelo risco profundo que me fizeram no porta-bagagens; nunca mais confundirei o meu carro com qualquer outro do mesmo modelo.
    .

    PERSONAGENS:

    Miguel Almeida
    .1m 75, 90 kg, cabelo castanho, olhos claros
    .42 anos
    .técnico de informática

    Margarida Cravo Almeida
    .1m 63, sem peso oficialmente calculável, cabelo pintado de caju, olhos castanhos
    .39 anos para sempre
    .funcionária da Câmara Municipal de Confins-de-Baixo

    Mauro Almeida
    .1 m 85, 78 kg, cabelos e olhos castanhos
    .19 anos
    .estudante encalhado no 12º

    Sandra Almeida
    .1m 70, 54 kg, cabelo ruivo pintado
    .17 anos
    .aluna do 10º ano; candidata a modelo

    António Almeida
    .1m 75, 68 kg, cabelo castanho claro, olhos azuis
    .14 anos
    .aluno do 10º ano com média de 18,9; provavelmente trocado na maternidade

    Maria Alice Cravo
    .1m 60, 60 kg, olhos castanhos, tensão arterial mais frequente: 9/18
    .72 anos
    .mãe de Margarida
    .empregada dos CTT reformada
    .a sua vida é um eterno passeio

    Cidália Almeida
    .1m 63, 56 Kg e meio, olhos verdes, doente crónica, nem ela sabe já de quê...
    .70 anos
    .mãe de Miguel
    .empregada de balcão no Grandela, reformada antecipadamente após o incêndio do Chiado

    Príncipe
    .60 cm, 25 kg, boxer
    .3 anos

    D.Natacha
    .1m 70, 67 kg, cabelo e olhos pretos
    .Qual é mesmo a sua idade?
    .Mulher-a-dias em casa da família Almeida

    Nikolai
    .1m 92, 93 Kg, louro e de olhos azuis
    .35 anos
    .Formação: engenheiro de sistemas
    .Profissão: ajudante de canalizador


    Capítulo 1- O dia em que nasci moura e pereça


    Como as suas leituras de Camões já estavam a anos-luz, dos seus lábios só saiu “Raios me partam”, quando, passeando por Alfama, entalou o pára-choques do jipão numa viela. Praguejando e amaldiçoando a sua sorte, teve de sair do veículo pela porta traseira, debaixo do olhar atónito dos moradores que o ameaçaram, depois, ao verificar os estragos. Para escapar daquela difícil situação, meteu a marcha-atrás e os pneus patinaram na calçada. Não se dando por vencido, engatou a tracção às quatro rodas, acelerou e as extremidades do enorme pára-choques escavaram nos edifícios dois enormes roços, fazendo espalhar um pó de taipa indatável pelos ares .
    Chamou a PSP e, na presença do agente Antunes de sobrolho carregado, Miguel Almeida jurou que a fachada daqueles dois prédios tinham umas barrigas traiçoeiras que lhe caçaram o jipe . Os moradores revoltados exigiram indemnizações, reparação das paredes e pinturas, enfim, um sem número de exigências, na esperança de uma hipótese de restauro gratuito.
    Pinturas? Aquelas capoeiras não viam tinta há mais de quarenta anos. Mas não havia nada a fazer! Felizmente o seguro cobria-lhe as despesas. O pior era o jipe na oficina.
    Passou a apanhar o comboio, de Massamá para Entrecampos (ida e volta, que remédio!). Sufocava entre os rostos mal acordados, desequilibrava-se quando viajava em pé, sentia-se encolhido ao lado da rapariga que lia a revista ANA, em edição de bolso (agradecendo a Deus por ela não se lembrar a ler o Guerra e Paz), em frente a dois pretos que se balançavam ao som da música dos seus phones, mas que era audível em toda a carruagem.

    À tarde, regressava da mesma maneira, entre odores a suor, a pés recozidos e a tabaco requentado, maldizendo os toques dos telemóveis (e como tocam essas máquinas nos comboios!), e as conversas de dezenas de passageiros. As conversas… que estranheza! As coisas que ficamos a saber... O estudante de blusão verde confessava à namorada ter copiado no exame de Química Orgânica; a senhora de óculos de gata falava da Milu que era uma grande mentirosa e que nunca mais a convidava para almoçar; a miúda da pastilha elástica combinava uma ida ao cinema com o melhor amigo do namorado,
    sem cenas, ‘tás a ver? É assim, ele não tem de saber, meu!
    Miguel pensava que viajar de comboio seria tão perigoso como meter a cabeça dentro do microondas; fechou os olhos e adormeceu. Abriu-os quando o revisor lhe tocou no braço. Estava em Mem-Martins. Como o bilhete só era válido até Massamá, pagou, sem reacção, com o olhar hipnotizado pela hora de ponta, os cinquenta euros de multa. Como um autómato, caminhou até casa, sem se lembrar de comprar o frango no churrasco para o jantar com picante e molho de limão, mais as batatas fritas Saloias Estaladiças, pujantes de colesterol e de sal.
    Decididamente, Miguel, não serves para praticamente nada! gritou-lhe a mulher. Nem a porcaria de um frango sabes comprar!
    Manda vir uma Pizza ! Não stressem! Para mim pode ser Quatro Estações!
    Cala-te, Sandra! Estão proibidos de falar em estações… em comboios! A minha vida tornou-se um inferno, um churrasco monumental! Façam omeleta de atum e salada de tomate.
    António apareceu à porta do quarto: Já comemos omeleta de atum três vezes esta semana! Mas há salsichas enlatadas na despensa.
    Está bem, eu faço arroz de salsicha! Que merda! Aguentem meia hora!
    Eu vou comer um queijinho
    , disse Miguel, abrindo a porta do frigorífico. E também vai uma cervejinha… Onde está o queijo? Onde está aquele queijinho de Nisa que a minha mãe trouxe? Só vejo aqui um nacozito.
    Aquele baixinho e de sabor forte?
    O Mauro traçou-lhe a forma com um gesto. Era uma maravilha. Desculpa, pai, não sabia que era de estimação.
    E tiveste o descaramento de deixar uma casquinha ridícula no frigorífico
    ? Atirou a casca ao Mauro, mas o Príncipe foi mais rápido e apanhou-a no ar.