terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Capítulo 10-…vamos ao Vira, ó ai, que o Vira…

António, anda comigo ao hiper! Despacha-te, tem de ser na hora de almoço.
Qual seria a pressa do pai? Encolheu os ombros, pegou na sua bolsa e pô-la a tiracolo.
Era a avó, ou melhor, o presente da avó. Tinha de ser um conjunto de ferro de viagem e secador de cabelo que ela lá tinha visto e que usaria contente num passeio com as amigas.
O jipe deu duas voltas ao primeiro piso do parque coberto. Está ali um! Não é um espaço para deficientes. Dois espaços para deficientes? Mas quantos deficientes… Este país terá assim tantos que justifique? Ah, finalmente! Merda, uma passadeira. Outra vez deficientes… Mas o que andam todos a fazer no hiper numa segunda-feira, à hora de almoço?
Num recanto, um carro fez marcha-atrás, voltou à frente, recuou de novo. Gajas ao volante! Quantas manobras precisa de fazer para tirar aquela amostra de carro dali?
É o pilar, pai! Há um pilar à esquerda.
Pilar, o caraças, pá! Lá vai ela, pronto!

Quando o jipe entrou, os faróis iluminaram uma porta metálica. ENTRADA E SAÍDA DE MERCADORIAS-PROIBIDO ESTACIONAR.
Que se lixe, só vamos demorar quinze minutos!
Correram para a loja, dirigindo-se à secção de pequenos electrodomésticos. Encontraram logo a caixinha com o conjunto de viagem. Espectáculo, António, menos de três minutos!
Posso ir comprar um CD gravável?
Claro!
Ainda tinham tempo.
Entraram no inferno. Sons e imagens saltitavam psicadélicos, enlouquecendo os sentidos. Som dolby digital. Surround!
Sabes quando é que ouvi pela primeira vez o som surround? Quando vi o filme O Terramoto. Tinha a tua idade. Até as cadeiras estremeciam. Hoje, temos o surround em casa.
Fazem estremecer os candeeiros dos vizinhos.
As construções não prestam. Olha ali o DVD do TITANIC! Vou levar, a tua mãe vai agradecer-me… e o ÚLTIMO TANGO EM PARIS, um clássico.
É um musical?
Hã? Nada! Foi um estoiro quando estreou em Portugal. Vem num pacote pro-moção com o JESUS CRISTO SUPERSTAR. Levo? Levo, depois posso não encontrar.

Ouviu-se um pregão noutro sítio.
O que é isto? A feira dos enchidos. Vamos num instante, tenho de comprar umas morcelas para grelhar.
Seguiram o cheiro da carne fumada. Outro inferno –odores e música popular embriagavam os sentidos.
Pata Negra em promoção. Vou buscar um naco. Não gostas, António?
O António gostava, adorava, mas o ponteiro do relógio já avançara quinze minutos…
Está bem, vai andando para a caixa. Está ali uma só com uma pessoa.
A operadora de caixa sorriu: Tem cartão CompraContente? Não, não tinha. As compras iam deslizando pelo tapete. 180 Euros e trinta e dois cêntimos.
Entregou o cartão Multibanco, digitou o código. Acesso negado? Experimentou três vezes. Acesso negado.
Bem, o que será isto? Ainda há pouco paguei na bomba de gasolina e não houve problema.
Tentou uma quarta vez, franzindo a testa para o olhar dos clientes que se acumulavam impacientes.
Vou ligar ao banco. Não pode suspender a compra para não empatar?
Poder posso…
a rapariga mostrou-se contrariada.
António disfarçou, observando as lojas do centro comercial
Está, Antunes? Estás porreiro? Ó pá, estou numa situação chata. Vim às compras e não consigo pagar com o cartão. O número? 2500532827. O quê? Ai, não? Ouve, ó Antunes, não me podes desenrascar 200 euros para liquidar isto? Já sabes que não há problemas (em voz mais baixa) com os juros. Obrigado, pá! Tenho que esperar dez minutos? OK, obrigadinho, pá. Um abraço! Voltou-se para a empregada: Sabe o que é? Paguei a minha viagem à Sierra Nevada e levantaram-me o cheque antes da data combinada.
Quando o problema ficou resolvido, correram para o jipe.
Ó pai, não sabia que íamos para a Sierra Nevada!
Nem eu! Mas o que é que aquela gaja tinha a ver com as minhas contas?
Isso ainda lhe sai caro!
Porquê? És tu que pagas? Quem é que trabalha?
Sim, mas… ó pai, o jipe estava no -2?
Sim, -2 azul C12. Tenho boa memória!
Não!
Não tenho?
Não está! Desapareceu.
Então, se calhar, está no -1.
Subiram as escadas a correr e verificaram que, naquele piso, os pilares estavam pintados de vermelho e de verde.
Roubaram-me o carro! Não acredito! Isto há-de ter um guarda! Está aí alguém? Ó senhor!
Um jipe Teneré? Vi. Acabaram mesmo de rebocá-lo.

O parque dos tristes rebocados ficava longe, pelo que tiveram de apanhar um táxi. O António perdeu as duas primeiras aulas e Miguel ficou branco quando tentou pagar a multa com o Multibanco e não conseguiu. Por sorte, a mulher tinha prolongado a hora de almoço para fazer umas compras ali perto. O preço da multa dava para comprar metade de uma pata negra…
As compras nos hipermercados cansam qualquer homem, sobretudo quando o cartão de plástico começa a perder a cor. O telemóvel tocou.
Sou eu, filho!
Oh, D.Maria Alice, que tarde desgraçada!
Sabes que cartas do Tarot saíram para ti? O Eremita, a Morte e o Louco.
E…

Corres risco de suicídio! Era só para te avisar! Não queiras deixar a minha filha viúva.

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