A antevéspera de Natal fora um dia muito agitado: os preparativos da consoada, as compras de última hora, os imprevistos – uma forte constipação da D. Alice que, lacrimante, lançara um SOS à filha para que a acompanhasse às urgências.
Depois, foi a dificuldade em pôr Natacha a preparar as filhós e, em simultâneo, o menu francês que Margarida teimara em colocar sobre a sua mesa naquele ano. O que lhe valera fora o facto de o caviar e de o foie gras já virem preparados. Os blinis eram velhos conhecidos de Natacha e ela era a única a saber prepará-los.
Deus enviou-me esta mulher. Foi um sinal para mim e para a minha família!
Foi também na antevéspera de Natal que Sandra recebera finalmente notícias de Luís, o rapaz que se evaporara com a sua mota, sem dizer nada a ninguém. Luís estava… na Índia (sim, ele e a sua mota) com uma comunidade franco-belga, absolutamente convertido à sua religião e às ervas (comidas e fumadas…). A carta que recebera era curta, escrita com a linguagem consonântica utilizada em milhares de SMS, minada de K, impessoal e fria, cinzenta e monocórdica. Sandra, em choque, nem chorou- foi buscar uma fotografia do rapaz, colou-a na parede do quarto, por cima da cómoda, e dedicou-lhe uma jarrinha de cristal com uma rosa branca. Transformara-o em defunto. Era isso que ele era agora: um morto. Imaginava-o de tanga, qual Siddharta subnutrido, contemplando as coisas que o rodeavam. Pensou duas vezes onde ficava exactamente a Índia, depois dirigiu-se ao quarto de António e consultou um Atlas. Loooonnnnge! Como teria ele lá chegado? Quanto tempo teria durado a viagem? Com quem foi? Sim, porque aquilo não era viagem que se fizesse sozinho, atravessando países em permanente conflito.
Desejou então que ele nunca mais voltasse e que a libertasse daquela viuvez prematura. Ia perguntar novamente à avó o que deveria fazer, nas cartas haveria de encontrar uma solução.
Das cartas dunca se ecotram soluçóis! afiançou-lhe Maria Alice, no auge da sua constipação. Podei ecotrar-se caminhos, mas tês de escolher o teu.
Do fundo da cozinha, dava orientações a Natacha: É decessário acrescêtar aguardête. Vodka, dão, hei! Veja como a massa está elástica. Os fritos devem ficar estaladiços.
O ruído dos convivas enchia o apartamento dos Almeida. Num aparador, estendiam-se as iguarias que Margarida tinha insistido em servir naquela consoada, mais aquilo que a mãe e a sogra tinha conseguido introduzir à socapa – filhós estaladiças, rabanadas em banho de calda, bolo-rei crivado de frutos secos, uma lampreia de ovos de olhos esbugalhados à espera que a comessem…
Os Russos lambiam-se perante aquele banquete de uma festa que nunca celebravam naquele dia. O irmão e cunhada de Miguel contavam à irmã de Margarida a sua ida a Londres, havia três semanas, sublinhando várias vezes o facto de terem comprado aí alguns presentes de Natal. Deve. Deve! pensava Luísa. Já vamos ver o que trazem importadinho da China…Que pretensiosos!
Viste como ela nos olhou, quando lhes contávamos a nossa ida a Londres, João Carlos?
É surpreendente, Marina, a dor de corno de algumas pessoas! Não ligues, querida. Ainda me pergunto como é que o meu irmão casou com uma mulher com uma irmã daquelas?
Sandra entrou na sala, envergando uma túnica branca. Trazia o cabelo apanhado e nenhuma maquilhagem, o que desde logo chamou a atenção de todos.
E que me dizes à nova faceta hippie da tua sobrinha? Dá-lhe mais um tempo e ainda se torna militante do Bloco de Esquerda.
A Barbie? Nem penses… é só uma fase. Acho que o namorado deu à sola para a Índia e ela ficou assim.
Assim que a mãe a viu, correu para ela. Mas onde é que tu foste buscar este lençol branco? Vai vestir outra coisa, pareces um anjo desleixado!
Quero estar em sintonia com o ambiente espiritual do Natal, o ambiente há muito perdido, substituído pelo consumismo compulsivo das almas perdidas.
Sandra! Sou eu, a tua mãe. Não me obrigues a levar-te ao psiquiatra. Não há história de tratamentos psiquiátricos na nossa família, minha fofinha. Ao menos, disfarça, vai vestir aquela roupinha que compraste há duas semanas, please, please, please. Margarida adorava falar em inglês quando se encontrava numa situação mais dramática, como se estivesse num filme americano.
Mãe, deixa-me RESpirar que é coisa que não faço como deve ser desde que nasci, gaita! É noite de Natal e sou um anjo.
A noite da consoada estendeu-se até às duas da manhã quando Sergei rubro de álcool arrastou a alegre Natacha para o elevador. Nessa altura já o Príncipe dormia no seu canto agarrado à pantufa nova de Miguel, presente da sua sogra que, nem mesmo nesta santa noite, conseguiu livrar-se da curiosidade de João Carlos e de Marina, expectantes pelas previsões para o ano seguinte. Dinheiro. Vamos ter mais dinheiro? Vamos viajar? Trocar de carro? Maria Alice abria a boca de tédio- Não trouxe as cartas! Vão visitar-me que eu deito as cartas com calma! Mas não apareçam na terça-feira que eu vou num passeio da associação de reformados à Serra da Estrela.
Afastaram-se de Maria Alice. A velha bruxa leva o tempo no passeio. Já não há velhos como antigamente, não achas, João Carlos?
As iguarias de Margarida não tinham conseguido o sucesso pretendido e ela sentara-se triste no chão da sala, depois de todos saírem. Miguel tentou consolá-la: Deixa… as pessoas não se habituam assim a essas coisas refinadas do pé para a mão. Para o ano há mais!
A mulher suspirou. Mais??? Nem me quero lembrar disso! Valia-lhe o presente do marido: uma gargantilha liiiiiiiinda!
Que só vou acabar de pagar daqui a três Natais! Lembrou a consciência de Miguel.
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