Estava na fila desde as sete da manhã, batendo os pés na calçada para espantar o frio com a Maria das Dores, queixando-se da artrose no joelho. O senhor Manuel do mini-mercado chegou depois com a mulher a tiracolo, resmungando com o nevoeiro ao mesmo tempo que puxava a maleta com rodinhas. Só depois surgiu a D.Fátima, com o telemóvel oscilando ao pescoço, ansiosamente acenando para a amiga: “Alice, acho que me esqueci de alguma coisa”.
“Da carteira?”
“Não!”
“Da chave de casa!”
“Não, está na mala!”
Alice cerrou o olhar: “Ó Fátima, ri-te lá!” A outra abriu um sorriso molengão: faltava-lhe a prótese que congelara o sorriso no lavatório.
“Vou a casa buscá-la num instante,” mas o autocarro já lá vinha e Fátima começou a ver a imagem do presunto prometido como prémio a desvanecer-se. Deu uma cotovelada à amiga, dizendo-lhe “tanto pior, vou soprar as bochechas para disfarçar.”
Entraram em Badajoz, ainda a cidade não despertara completamente. O autocarro despejou os turistas no centro, lembrando o guia que deveriam comparecer às 13 (hora local, entenda-se) no restaurante Gaspacho Andaluz. O ar estava limpo, mas frio, os enfeites da Navidad embelezavam as calles. As idosas invadiram os armazéns Extremeños, na esperança de uma pechincha – umas pantufas quentinhas, roupa interior de calidad, enfim, algo que que pudessem carregar para casa e servir de presente de Natal daquele ano. Impossível. Tudo lhes parecia pesado para as magras pensiones de reforma. Afinal, que graça tinha ir a Badajoz e não poder miercolar como qualquer espanhol? Saíram, correndo, na esperança de encontrar uma tienda de caramelos de piñones e tabletes de torrón. Experimentando o portulês atrevido, abordaram um velhote:
“Mira, donde podemos comprar caramilhos?”
“Buenos dias al menos, guapas. Van por la calle Morales e encontraran una tienda com todo isso. Pero no comprendo la fixacion de que ustedes tienen com los caramelos! Y tu, sien dientes, como vas a hacer para comer el torrón? Ah, ah!”
“Descaradon. Miete te com tu irmana, velho nojento!”
Alice livrou Fátima de uma segunda Aljubarrota e foram calle acima à procura da tienda, quando um cheirinho a churros lhes invadiu as narinas. Cinco minutos depois, estavam sentadas a molhar os laços fritos estaladiços numa verdadeira papa de chocolate caliente. Daí até à hora combinada foi um instante, só dando tempo para se abastecerem com dois sacos de quilo de caramelos e uma caixa de torrón cada uma.
Com os pés inchados da viagem, apressaram o passo até à calle de los Doblados, entrando pela porta do restaurante em cuja entrada, já atravancada por dezenas de sacos de caramelos, torrones e chouriços, os esperava uma mesa luxuosa com tapas de toda a qualidade que foram petiscando até à hora do almoço e guardando num saco de plástico dissimulado na mala de mão.
Fátima não conseguiu livrar-se de um pedaço de polvo em salada e mastigou-o todo o dia com as gengivas nuas dando a impressão de que mamava em seco, até que o atirou sorrateiramente para uma jarra de flores que alindava a sala onde foi feita a demonstração do produto: um colchão fantástico anti-ácaros, anti-fungos, anti-cheiros, anti-nódoas, anti-fogo,anti-artroses, anti-reumatismos, anti-escaras, anti-rugas… tão anti que até se tornava anti-pático, mas era lindo, com o forro em pérola… confortável como as nuvens, firme como uma rocha e nunca se deformaria. Vinte anos de garantia- ora, isso ultrapassaria a esperança de vida de qualquer um dos excursionistas. Os velhos começaram a olhar desconfiados o homem que fazia a demonstração e que os tinha ajudado a deitarem-se, um a um, naquele maravilhoso leito.
O outro acrescentou: “Mas podem deixá-lo de herança.”
“A-ah! anuíram os velhos, assim ainda vá!Mas deve ser muito caro!”
“O seu preço real, em qualquer loja da especialidade, é de 1700 euros, mas para uns senhores tão simpáticos que nos acompanharam até Badajoz, 999 euros.”
“Mesmo assim…se eu tivesse 999 euros…”-disse uma.
“Não pode ser nada, tenho de mudar as lentes dos óculos!”
“Isso dos euros é o quê? Quanto é que isso dá em contos de réis?”
“Para aí uns duzentos e tal?”
“Escudos?”
“Contos, porra!”
O demonstrador fazia um bailado com os braços: “Nada de alarmismos. A nossa empresa tem solução para tudo. Previmos a vossa situação financeira e criámos um crédito especial: o crédito sénior.”
“A-ah!”
“Poderão pagar o nosso colchão em 36 prestações mensais de 49.90€.”
“Mas quanto é que isso dá em contos?”
“Mas quando é que a gente se vai embora? É que eu quero estar em casa à hora do Preço Certo!”
“Mas não havia um lanche primeiro?”
“Ah, não! E depois como é que nós levamos o colchão para casa?”
“Não há problema, a nossa empresa levará o colchão a casa sem qualquer custo. Aproveitem. Só necessito de uma assinatura e de um cheque.”
“De um queque? Eu sabia que havia um lanche qualquer. Li no folheto.”
“A senhora, que tem ar de sofrer da coluna, já pensou no que pouparia em medicamentos?”-inquiriu o homem, apontado para a D.Alice.
“Primeiro quero ver o presunto!”
“É verdade, onde está o presunto?”
“Sim, onde está a oferta?”
Fez-se silêncio. Um velhote da última fila levantou-se, abanou a cabeça e disse: “O meu pai não vai gostar nada disto e nunca mais me vai deixar sair.”
O demonstrador do colchão oscilou, ficou muitíssimo pálido e caiu sobre ele (o colchão, claro!). Nunca mais aquela empresa enfiou os simpáticos folhetos de viagens baratas nas caixas do correio do bairro da D.Alice, e os velhotes continuam a dormir nos seus modestos colchões, na companhia dos ácaros, os únicos seres que nunca os abandonam e que lhes aturam as caturrices.
“Ó amigo, então é agora que vem o lanchinho?”
Olá Filomena,
ResponderEliminarNão há almoços grátis. ;-)
Quando me aparecem folhetos desses, pergunto a mim mesma como é possível uma viagem ser tão barata? estão à espera da compra dos artigos.
Abraço
Luisa