quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Capítulo 8- “Não vazes tantas vezes vozes rente ao vento

E não escutes os pássaros nem mesmo o mar
Não oiças nem sequer o vento se soprar
Ouve o tempo passar escuta a sua voz
Pois o tempo tem voz o tempo fala


Fechou o livro de Ruy Belo, pegou numa folha de papel e começou a garatujar:
Chamo-me António e todos julgam (até eu, às vezes...) que fui trocado na maternidade, de tal forma me afasto da minha família que olha para mim como se fosse um alien... à excepção da avó Alice que vê em mim uma encarnação de Salazar, mas essa também não respeita os parâmetros de normalidade do meu agregado familiar.
Sete horas. O despertador arranca-me de um sonho luminoso, de uma cena em que escalo uma montanha com a Ana do 10º 5ª. A casa adormecida no silêncio dos quartos vai-se enformando nas paredes difusas dos meus olhos ensonados. Tomo duche calmamente e atiro-me a um pequeno-grande-almoço (flocos com leite, um croissant com fiambre e queijo, uma chávena de café e uma maçã). Quando já estou a acabar, toca o despertador dos pais. Resmungam os dois, fazem o jogo do empurra para ninguém ser o primeiro a levantar-se e ficar mais dez minutos na cama. Começa o barulho, não o barulho testemunho de vida, mas tão-só o ruído irritante da rotina a vibrar no cristal dos meus tímpanos.
Vou acordar a Sandra, contudo a estrela da moda, qual bela adormecida, só despertará ao ser beijada por um príncipe que lhe habita os sonhos e lhe compra roupas de alta costura em lojas parisienses de avenidas que ela nunca viu.
Toca o despertador do telemóvel do Mauro. Toca sem desesperar (é a sorte das máquinas) durante cinco minutos. Só um morto resistiria tanto tempo ao toque de THRILLER , mas não creio que ele se perca em sonhos como a Sandra. Acho que ele está mesmo morto quando dorme, completamente apagado, o que condiz na perfeição com a vida que leva. O Mauro bate o recorde da toilete matinal (nove minutos, quarenta e nove segundos e vinte e dois centésimos) e bebe sempre iogurte líquido, porque é mais rápido. É o primeiro a sair, mas raramente chega à porta da escola. É um mistério o seu destino, àquela hora só os cafés entorpecidos pelo cheiro a lixívia estão abertos.
Depois saio eu. Vou a pé, passo pela casa do Tiago, depois pela da Vanessa e, quando temos o nosso grupo reunido, rumamos à Secundária Flor de Magalhães, um conjunto de pavilhões maquilhados com graffitis de péssimo gosto. É feia, é fria, mas é a minha segunda casa (terceira, se contar com o apartamento na Costa!).
Não sou só eu que gosto dela, o Director, também. No dia em que foi parido o Ranking das escolas, ele chorou. A nossa não estava no grupo das “cem mais”... Eu defendo uma teoria própria. Acho que o Mauro e o seu grupo foram os verdadeiros culpados das médias desastrosas da escola. Esta teoria não é partilhada pelos meus pais que atribuem a culpa aos professores, nem pelos professores que juram que os culpados são os pais. Na opinião da Cátia, uma barra em astrologia, a conjuntura astral dos meses de Junho e de Julho foi a verdadeira responsável pelo fracasso dos exames nacionais. A avó Cidália diz que a culpa é do Ministro da Educação que permite que se saia da primária quase tão analfabeto como se entrou. A mulher-a-dias, D.Natacha, acha, em português ainda mal limado, que há um mal social que precisa de ser alterado, uma espécie de agonia dos valores mais básicos.
Abro a janela e evoco o ar fresco da noite, nada me traz respostas, só uma brisa envergonhada agita as cortinas. Do outro lado da rua, o espelho dos prédios reflecte-nos até ao infinito. Quantos Mauros, quantas Sandras se movem por detrás das varandas despidas de flores? Quantas mães chegam arrastando os sacos inchados do supermercado? Quantos pais protestam no trânsito, escapando à angústia pelo bocal do telemóvel numa conversa inconsequente, flutuando nas ondas hertezianas sobre os tejadilhos como almas penadas? Quantas avós Cidálias torturadas com medo da morte e ainda com mais medo da vida? Quantas avós Alices olham para além do horizonte nas cartas, tentado alcançar o futuro, sem sequer ter agarrado o presente? Quantas Natachas nos limpam os vidros destes espelhos? E os Príncipes? Quantos Príncipes esperam por nós à porta para os levarmos à rua e desentorpecerem as patas rígidas de uma inactividade imposta? Quantos?

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