segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Capítulo 9-cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,

cão de olhos que afligem,
cão-problema...

Sai depressa, ó cão, deste poema!

Alexandre O'Neill


Nasci numa quinta de um amigo de Miguel. Pertencia a uma ninhada de seis e ainda nem brincava, quando me vieram buscar. Aconchegado num cobertorzinho desbotado, nos braços de António, fui baptizado de Príncipe. Nesse dia, percebi que havia mais mundo para além do caixote onde acordara para a vida, debaixo das lambidelas da minha mãe, a cadela Tora. A família Almeida adoptara-me facilmente, numa época em que era moda ter um boxer.
Gozei a minha infância até ao tutano, roendo sapatos, cabos eléctricos, o tarot de uma avó, a dentadura da outra, o batom preferido de Sandra, o telemóvel de Mauro… não havia jornal que me educasse, nem chinelo que me emendasse.
Foi deste modo que aprendi a ler o suplemento de Economia e a especializar-me em Finanças. Suponho que, nas redondezas, não haja mais nenhum cão que o faça, o que me traz em permanente estado depressivo por não poder trocar impressões com ninguém. Assim, tive crises de uivos permanentes que me atiraram para o divã de um psicólogo de animais, duas vezes por mês durante um ano, no consultório do qual esperava impaciente a minha vez, entre uma jibóia albina claustrófoba e um papagaio que mergulhara numa tristeza sem fim quando os donos o esqueceram em frente à TV que transmitia os debates da assembleia sobre o estado da nação. Ia pela mão do Mauro ou da Sandra, de trela tristemente pendida, em passo lento, desprezando até os postes mais fedorentos do caminho.
Um dia, acordei e surpreendentemente já não sentia aquele aperto no estômago. A única coisa que me surgia na memória era a imagem fulgurante da Betsy, a cadelinha do 34. Estes ataques só me passaram ao aperceber-me da sua existência, ao passear à noite com a mãe, uma velha boxer babosa que tem artroses na anca. Uma destas noites, quando regava a base de um outdoor com propaganda eleitoral já esquecida, vi a Betsy ao longe, atrás do presépio do parque dos Plátanos. Não era possível! A Betsy a fazer o seu chichi entre a vaquinha e o S.José.
Não é possível,Betsy!
Teve que ser mesmo aqui, Príncipe. Tu sabes como eu adoro ouvir o líquido a escorrer pelo metal das sarjetas, mas não fui a tempo. Acreditas em mim?
Oh, Betsy!
Oh, Príncipe!
Oh, Betsy, Betsy!

E foi mesmo ali, perante o olhar esgazeado do burro que tudo aconteceu. Olhei o cenário desta minha cena e aproximei-me do Menino, ganindo baixinho desculpas de cão desavergonhado. O Bebé manteve os bracinhos enregelados virados para o céu e não parou de sorrir.
E, pronto, adeus taxas de juro iô-iô, contas públicas tenebrosas, défice incontrolável, crise mundial aguda. O bom do Príncipe voltara a eu mesmo. Eu era outra vez o boxer traquinas e espertalhão. Resolvi comemorar, comendo os bifes do jantar que descongelavam sobre a bancada da cozinha. Carreguei com a pata no pedal e depositei ecologicamente a embalagem de plástico bem lambida no caixote amarelo da reciclagem. Fui de tal maneira eficiente que a minha dona chegou a duvidar da existência da carne.
Como genuíno cão que sou, adoro todas os meus donos, mas tenho uma predilecção pelo António, o único que fala comigo como se eu fosse gente. E eu oiço-o atentamente, ora de orelha caída ora de orelha arrebitada, oscilando lateralmente a cabeça e babando-me sempre. Tudo o que faço tem consequências positivas. Até o osso de borracha, que consegui enfiar naquela terrina de loiça onde eles fazem chichi, nos trouxe, pela mão do canalizador, a família russa que salvou esta casa do caos doméstico, reanimando a qualidade das refeições e da limpeza. O que não faço ou o que tem geralmente consequências negativas é-me atribuído injustamente. Qualquer objecto que desapareça nesta casa de loucos é o Príncipe que esconde. Não é verdade! A única maldade que faço é tirar do saco do Expresso o suplemento económico e enfiá-lo imediatamente no recipiente azul para que ninguém adoeça como eu. E nem os aborreço uivando ,quando olham para a televisão, embevecidos perante a imagem do primeiro ministro eleito com o seu voto.
Este homem é chiquíssimo. Olhem só para a forma como lhe assenta o fato! É impecável, podia até ser um actor de cinema. Impossível! Até a Betsy diz que gostava de tê-lo como dono, que lhe lembra o homem da publicidade às máquinas de expresso com cápsulas. Como dizem os Yorkshire Terrier do 53: Disgusting!

3 comentários:

  1. Ah!GRANDE PRÍNCIPE!

    Bicho amigo do seu dono, não restam dúvidas! E com tão humanas qualidades não se estranham as mortais depressões. Até nisso o bom do personagem canino se aparenta aos de 2 pernas. Quem não anda deprimido nos dias que correm? Resta-nos mesmo, e só, o homem do nespresso, o genuíno. What else??

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  2. Olá Filomena,

    Gostei de conhecer o seu blog. Obrigada pela sua visita, ao LHM.
    Pois é, não tenho colocado fotos no Olhares, quem sabe um dia destes, me decida de novo?

    Voltarei!

    Abraço
    Luisa

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  3. História, muito curiosa!

    Abraço
    Luisa

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