Em que me faz jazer minha desgraça,
A desesperação me despedaça,
A desesperação me despedaça,
No mesmo instante, o frágil sofrimento.
Bocage
Este ano, passamos o Natal em casa de quem? inquiriu Miguel.
Este ano, vai ser na nossa! exclamou Margarida. Levamos o tempo a ir para casa dos outros... Ai, vai ser giríssimo. Quantas pessoas vão ser ao todo? Nós os cinco, as avós, sete; o teu irmão, a tua cunhada, os teus sobrinhos, onze; a minha irmã e a miúda, treze. Deixa cá contar outra vez (conta pelos dedos) . Somos treze. Não pode ser, temos que arranjar mais alguém. Mas quem?
O João e a Rosa.
Esses vão passar com as respectivas famílias. Não posso sentar esse número à mesa, a minha mãe recusar-se-ia... Bom...nesse caso seríamos só doze.
Isso não tem importância. Quem é que liga a essas histórias?
Toda a gente, insensível!
Em meia-hora, pôs-se em contacto com todos sem resolver o assunto.
Põe-se o Príncipe a comer à mesa. Assim seremos catorze, propôs o António.
Considerou-se seriamente a hipótese. A seguir reflectiu-se sobre a ementa da consoada. Ela tinha visto um artigo numa revista feminina com uma proposta de consoada deslumbrante: com pâtes, caviar... um lindo perú recheado...
Acho que ninguém gosta de pâté, a não ser o Príncipe (o cão rosnou ao ouvir o seu nome pela segunda vez). O melhor é manter o bacalhau cozido com batatas e grelos.
Isso está completamente fora de moda! A tradição francesa é a mais adequada.
Quinze dias para o Natal. A mulher-a-dias despede-se inesperadamente. Que vai para Trás-os-Montes... mas Margarida sabe pela vizinha do 6º esquerdo, que tem uma prima cuja empregada conhece a traidora, que, afinal, ela vai para Lisboa, pois ofereceram-lhe mais dinheiro pela hora de trabalho. Muito gostaria de conhecer a especuladora que fez aumentar o preço da hora das mulheres-a-dias. O pior é o Natal que está à porta!
Telefona para a Manecas que, suspirando, lhe respondeu: Arranja também uma para mim, se encontrares.
Desesperada, à beira do abismo provocado por dois everestes de roupa por engomar, enfiou um cubo de caldo de galinha na máquina de lavar loiça e só se espantou quando um surpreendente cheiro a canja sintética encheu a cozinha. Para cúmulo da desgraça, ao puxar o autoclismo, a sanita encheu e assim se manteve. Aos gritos, acordou Miguel, arrastando-o ensonado até ao local do cataclismo.
Serve-te da outra casa de banho.
Qual? A que é propriedade da tua filha? Arranja-me um canalizador. Já!
Às seis e meia da manhã? Acalma-te. Não há nenhum serviço permanente de canalizadores!
Julgas tu! Ainda na semana passada estava um folheto na caixa do correio.
Onde o teria guardado?
Vasculhou a primeira gaveta do móvel da entrada de onde saíram facturas da Telecom, da Telepizza, da Tv Cabo; um folheto de uma excursão de dois dias a Badajoz por 25 € com tudo incluído; um folheto do hipermercado com as promoções de Natal... por fim surgiu um papelito do tamanho de um cartão de visita.
JOAQUIM MARÇAL
Depreça e bem á sempre quem.
Trabalhos de eletrecista e canalizador.
NÃO ÊXITE, TELEFONE
T.M. 989727245
É isto, Miguel, telefona!
Miguel procurou, contrariado, o telemóvel.
Estou? Tenho um problema com a canalização da casa de banho...
O senhor e mais três que me telefonaram durante a noite. E de que se trata? É para substituir também as louças?
Não. Foi a sanita.
Merda! Desculpe, detesto esses casos. Tem a certeza de que não consegue desenrascar-se sozinho?
O quê? Eu não entendo nada de canos, senhor! Então, posso contar consigo?
Deixe-me ver as marcações. Ah,ah! Pode ser às 13 horas?
Pois seja! respondeu Miguel e acrescentou as indicações referentes à morada.
Ai que miséria! À 1 hora? Ainda por cima não temos ninguém para cá ficar.
Eu não posso vir a casa! Tenho um serviço na Segurança Social. O sistema foi abaixo e, quando retomou, ficou completamente “tantan”. Dez bebés receberam o subsídio de casamento; um velhote da Amadora, um subsídio de nascimento; dez mortos , o Rendimento Mínimo Garantido...
Está bem! Chega de histórias. Venho eu. Pois não sou eu a vítima? A pobre mulher não tem trabalho, não tem responsabilidades...
O despertador do António tocou e, segundos depois, este apareceu à porta e dirigiu-se à casa de banho.
Se mijares nessa sanita, és um homem morto! gritou-lhe a mãe.
Qual é a crise? perguntou o rapaz.
Sanita avariada! Usa a outra casa de banho.
Tenho de ir à casa de banho da Barbie? Que início de dia!
Pela hora do almoço, Margarida chegou a correr. Meu Deus, faz com que ele não se demore muito!
Às treze horas e dezoito segundos, a campainha da porta tocou.
Céus! Este é pontual! Quem haveria de dizer?
Um homem gordo entrou acompanhado de um atleta de quase dois metros, loiro e de olhos azuis.
Isto não me está a acontecer. É uma alucinação! Isto não é normal, pensou Margarida em transe.
Onde é a casa de banho?
Por ali, à esquerda.
Ora vamos lá ver isto. Tchiiiii!
Margarida começou a roer as unhas. Quando eles se põem com os Tchiiiiis é mau sinal.
O senhor Joaquim gritou para o ajudante: Nikolai, vai lá abaixo à carrinha e traz-me a caixa azul!
Da, respondeu o outro. Desapareceu por dois minutos e voltou a correr.
Nikolai, tira a água da sanita e desmonta-a!
Da. Si.
Ai, este Russo é do melhor! Imagine que no país dele era engenheiro de informática.
Acha que ele entende de canos?
Tem de entender! Olhe que eu pago-lhe bem.
Imagino!
Ouça, quando lhe perguntarem quem fez o trabalho, responda que foi um engenheiro. Imagine a cara das suas amigas! Não é Nikolai? Está cá há seis meses, sempre a trabalhar aqui pró Jaquim. A senhora dele é que está desempregada. Era enfermeira. Eles lá pagam pouco e aquilo não é vida.
Um relâmpago de alívio varreu a mente de Margarida.
Ela não quererá trabalhar a dias?
Ó Nikolai, a tua patroa não quer trabalhar para esta senhora?
O homem levantou-se e fez uma ligeira vénia.
Salva! Combinaram encontrar-se à noite, já com a canalização operacional. Afinal tinham encontrado o osso de borracha do Príncipe atravessado no fundo da sanita. Margarida não sabia se havia de matar o bicho (o serviço custara 70 €) ou se havia de abraçá-lo e comprar-lhe um osso novo (tinha ganho uma empregada).
Às oito horas, o casal de russos entrava para as suas vidas. Natacha seria paga como se fosse portuguesa, pois os Almeida não queriam ser acusados de xenófobos avarentos.
A mulher parecia desembaraçada, muito embora ainda não dominasse minimamente a língua portuguesa (o senhor Joaquim também não, e olha o que ele ganha!) .
Cozinhar...sabe cozinhar?
Da. Cozinhar. Não cozinhar português. Pode aprender.
Claro, vai aprender!
Lembrou-se dos quilos de revistas de culinária que coleccionava, daquelas cujas receitas são acompanhadas por fotografias elucidativas. Salva! Salva!
Amanhã, caldo verde e bacalhau à Brás. Vamos começar a estudar hoje...
Enquanto o caldo verde da Natacha borbulhava sob o nariz do exaustor, Nicolai olhava para o portátil de Miguel.
Eu na Rússia trabalhar nisto.
E eu trabalho aqui. Nem imagina o serviço que tenho. Trabalho para a Inforbit.
E começaram a conversar numa língua que não era português, nem russo, mas algo povoado de bits, de rams, de downlowds… Miguel apercebeu-se, passados quarenta e cinco minutos, que o homem que lhe desentupira a sanita estava a ajudá-lo a liquidar um vírus que atacara o programa que geria a circulação do metro de Lisboa e que ameaçava pôr os utentes à beira da loucura e do desespero uma destas manhãs.
Bocage
Este ano, passamos o Natal em casa de quem? inquiriu Miguel.
Este ano, vai ser na nossa! exclamou Margarida. Levamos o tempo a ir para casa dos outros... Ai, vai ser giríssimo. Quantas pessoas vão ser ao todo? Nós os cinco, as avós, sete; o teu irmão, a tua cunhada, os teus sobrinhos, onze; a minha irmã e a miúda, treze. Deixa cá contar outra vez (conta pelos dedos) . Somos treze. Não pode ser, temos que arranjar mais alguém. Mas quem?
O João e a Rosa.
Esses vão passar com as respectivas famílias. Não posso sentar esse número à mesa, a minha mãe recusar-se-ia... Bom...nesse caso seríamos só doze.
Isso não tem importância. Quem é que liga a essas histórias?
Toda a gente, insensível!
Em meia-hora, pôs-se em contacto com todos sem resolver o assunto.
Põe-se o Príncipe a comer à mesa. Assim seremos catorze, propôs o António.
Considerou-se seriamente a hipótese. A seguir reflectiu-se sobre a ementa da consoada. Ela tinha visto um artigo numa revista feminina com uma proposta de consoada deslumbrante: com pâtes, caviar... um lindo perú recheado...
Acho que ninguém gosta de pâté, a não ser o Príncipe (o cão rosnou ao ouvir o seu nome pela segunda vez). O melhor é manter o bacalhau cozido com batatas e grelos.
Isso está completamente fora de moda! A tradição francesa é a mais adequada.
Quinze dias para o Natal. A mulher-a-dias despede-se inesperadamente. Que vai para Trás-os-Montes... mas Margarida sabe pela vizinha do 6º esquerdo, que tem uma prima cuja empregada conhece a traidora, que, afinal, ela vai para Lisboa, pois ofereceram-lhe mais dinheiro pela hora de trabalho. Muito gostaria de conhecer a especuladora que fez aumentar o preço da hora das mulheres-a-dias. O pior é o Natal que está à porta!
Telefona para a Manecas que, suspirando, lhe respondeu: Arranja também uma para mim, se encontrares.
Desesperada, à beira do abismo provocado por dois everestes de roupa por engomar, enfiou um cubo de caldo de galinha na máquina de lavar loiça e só se espantou quando um surpreendente cheiro a canja sintética encheu a cozinha. Para cúmulo da desgraça, ao puxar o autoclismo, a sanita encheu e assim se manteve. Aos gritos, acordou Miguel, arrastando-o ensonado até ao local do cataclismo.
Serve-te da outra casa de banho.
Qual? A que é propriedade da tua filha? Arranja-me um canalizador. Já!
Às seis e meia da manhã? Acalma-te. Não há nenhum serviço permanente de canalizadores!
Julgas tu! Ainda na semana passada estava um folheto na caixa do correio.
Onde o teria guardado?
Vasculhou a primeira gaveta do móvel da entrada de onde saíram facturas da Telecom, da Telepizza, da Tv Cabo; um folheto de uma excursão de dois dias a Badajoz por 25 € com tudo incluído; um folheto do hipermercado com as promoções de Natal... por fim surgiu um papelito do tamanho de um cartão de visita.
JOAQUIM MARÇAL
Depreça e bem á sempre quem.
Trabalhos de eletrecista e canalizador.
NÃO ÊXITE, TELEFONE
T.M. 989727245
É isto, Miguel, telefona!
Miguel procurou, contrariado, o telemóvel.
Estou? Tenho um problema com a canalização da casa de banho...
O senhor e mais três que me telefonaram durante a noite. E de que se trata? É para substituir também as louças?
Não. Foi a sanita.
Merda! Desculpe, detesto esses casos. Tem a certeza de que não consegue desenrascar-se sozinho?
O quê? Eu não entendo nada de canos, senhor! Então, posso contar consigo?
Deixe-me ver as marcações. Ah,ah! Pode ser às 13 horas?
Pois seja! respondeu Miguel e acrescentou as indicações referentes à morada.
Ai que miséria! À 1 hora? Ainda por cima não temos ninguém para cá ficar.
Eu não posso vir a casa! Tenho um serviço na Segurança Social. O sistema foi abaixo e, quando retomou, ficou completamente “tantan”. Dez bebés receberam o subsídio de casamento; um velhote da Amadora, um subsídio de nascimento; dez mortos , o Rendimento Mínimo Garantido...
Está bem! Chega de histórias. Venho eu. Pois não sou eu a vítima? A pobre mulher não tem trabalho, não tem responsabilidades...
O despertador do António tocou e, segundos depois, este apareceu à porta e dirigiu-se à casa de banho.
Se mijares nessa sanita, és um homem morto! gritou-lhe a mãe.
Qual é a crise? perguntou o rapaz.
Sanita avariada! Usa a outra casa de banho.
Tenho de ir à casa de banho da Barbie? Que início de dia!
Pela hora do almoço, Margarida chegou a correr. Meu Deus, faz com que ele não se demore muito!
Às treze horas e dezoito segundos, a campainha da porta tocou.
Céus! Este é pontual! Quem haveria de dizer?
Um homem gordo entrou acompanhado de um atleta de quase dois metros, loiro e de olhos azuis.
Isto não me está a acontecer. É uma alucinação! Isto não é normal, pensou Margarida em transe.
Onde é a casa de banho?
Por ali, à esquerda.
Ora vamos lá ver isto. Tchiiiii!
Margarida começou a roer as unhas. Quando eles se põem com os Tchiiiiis é mau sinal.
O senhor Joaquim gritou para o ajudante: Nikolai, vai lá abaixo à carrinha e traz-me a caixa azul!
Da, respondeu o outro. Desapareceu por dois minutos e voltou a correr.
Nikolai, tira a água da sanita e desmonta-a!
Da. Si.
Ai, este Russo é do melhor! Imagine que no país dele era engenheiro de informática.
Acha que ele entende de canos?
Tem de entender! Olhe que eu pago-lhe bem.
Imagino!
Ouça, quando lhe perguntarem quem fez o trabalho, responda que foi um engenheiro. Imagine a cara das suas amigas! Não é Nikolai? Está cá há seis meses, sempre a trabalhar aqui pró Jaquim. A senhora dele é que está desempregada. Era enfermeira. Eles lá pagam pouco e aquilo não é vida.
Um relâmpago de alívio varreu a mente de Margarida.
Ela não quererá trabalhar a dias?
Ó Nikolai, a tua patroa não quer trabalhar para esta senhora?
O homem levantou-se e fez uma ligeira vénia.
Salva! Combinaram encontrar-se à noite, já com a canalização operacional. Afinal tinham encontrado o osso de borracha do Príncipe atravessado no fundo da sanita. Margarida não sabia se havia de matar o bicho (o serviço custara 70 €) ou se havia de abraçá-lo e comprar-lhe um osso novo (tinha ganho uma empregada).
Às oito horas, o casal de russos entrava para as suas vidas. Natacha seria paga como se fosse portuguesa, pois os Almeida não queriam ser acusados de xenófobos avarentos.
A mulher parecia desembaraçada, muito embora ainda não dominasse minimamente a língua portuguesa (o senhor Joaquim também não, e olha o que ele ganha!) .
Cozinhar...sabe cozinhar?
Da. Cozinhar. Não cozinhar português. Pode aprender.
Claro, vai aprender!
Lembrou-se dos quilos de revistas de culinária que coleccionava, daquelas cujas receitas são acompanhadas por fotografias elucidativas. Salva! Salva!
Amanhã, caldo verde e bacalhau à Brás. Vamos começar a estudar hoje...
Enquanto o caldo verde da Natacha borbulhava sob o nariz do exaustor, Nicolai olhava para o portátil de Miguel.
Eu na Rússia trabalhar nisto.
E eu trabalho aqui. Nem imagina o serviço que tenho. Trabalho para a Inforbit.
E começaram a conversar numa língua que não era português, nem russo, mas algo povoado de bits, de rams, de downlowds… Miguel apercebeu-se, passados quarenta e cinco minutos, que o homem que lhe desentupira a sanita estava a ajudá-lo a liquidar um vírus que atacara o programa que geria a circulação do metro de Lisboa e que ameaçava pôr os utentes à beira da loucura e do desespero uma destas manhãs.
Já começava a acreditar que este país estava à beira do caos, sem salvação possível e eis senão quando a salvação chega do leste. E, para mais, na figura de um latagão loiro e de olhos claros.Aleluia!! Será que o sonho se irá tornar realidade?? Abençoada sejas por renovares e alimentares a minha esperança numa sociedade harmoniosa, com rápidas e sábias soluções para os problemas dos "portugas" residentes( cada vez menos, já que os + espertos e com maior sentido de sobrevivência há muito que partiram )
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