segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Capítulo 3- Eles não sabem, nem sonham...

António Gedeão? Esse bacano não era locutor da Antena 3? Eh pá, desculpa, dói-me a cabeça, parece que andei a atirar com ela contra as paredes. Ontem, mandei uns shots; a partir do segundo deixei de conseguir contar, minha. Vais às aulas? Eu? Tenho lá pachorra para essas cenas. Afastou um pouco o telemóvel do seu ouvido direito. Encalhado no 12º ano, qual navio à espera de melhor maré, ia à escola às vezes, conseguindo iludir o Director de Turma com justificações que uma tia de uma amiga surripiava do balcão da recepcionista de uma policlínica onde trabalhava a dias. No ano que corria, já tinha sofrido uma entorse, duas dores de dentes, uma indigestão, um esgotamento (esse foi verdadeiro, embora inexplicável...), contraído uma gripe e esvaziado numa intoxicação alimentar. Nunca reprovava por faltas, nunca anulava a matrícula. Era um resistente, mas recusava-se a lutar, à excepção daquela cena à porta da discoteca CABUL, onde dera um valente murro ao porteiro que lhe retribuiu com algo parecido com uma matraca e que o deixara com duas costelas partidas.
No meio da confusão, uma pedra atingira o pára-brisas do jipe do pai. Perante o duplo acidente, hesitante entre os dois caminhos a seguir (o hospital ou a oficina) e ciente da paixão que o pai nutria pelo carro que adquirira havia um ano e que continuaria a pagar por mais quatro, telefonou ofegante ao Manel João cujo tio tinha uma oficina em Carenque.
Ó meu, onde andas tu? A estudar? ‘Tás com febre, pá. Mete-te num táxi e vem ter comigo a Alcântara.
Uma hora depois, Manel João encontrou Mauro sentado sobre os fragmentos de vidros, olhando as estrelas pelo ecrã do pára-brisas.
Fizeste-a bonita, pá , o teu pai vai fazer-te em merda.
Ai, cala-te e leva-me à oficina do teu tio.
São três da manhã, o gajo está a dormir. Não queres ir antes ao hospital?
No hospital não têm vidros. Entra e cala-te.

O vento frio da noite assobiava dentro do jipe, despenteando-os e provocando novelos de um barulho ensurdecedor. Ligaram o rádio e puseram o volume no máximo para abafar o ruído. Às três e quarenta, entravam em Carenque e, pouco depois, estacionavam à porta de uma oficina em cujos portões estava escrito em letras enormes e irregulares DINOFICINA: MECÂNICA E BATE-CHAPA. O tio do Manel, que morava no andar superior, apareceu à varanda após duas buzinadelas.
Que brincadeira vem a ser esta? Não deixam um gajo dormir.
Ó tio, chegue cá abaixo, que estamos enrascados.
Passados cinco minutos, o homem desceu, envergando um fato de treino com o emblema do Benfica do lado esquerdo, mesmo sobre o coração.
Vocês querem um pára-brisas? Vocês julgam que eu tenho uma fábrica de vidro dentro da oficina? Isto é preciso encomendar...para um carro destes talvez demore dois ou três dias...ou então vais de manhã ao concessionário. Oh, porra, amanhã é domingo!
Mauro caiu fulminado no chão, acordando depois no sofá da sala do tio do amigo.
Acho que estou a morrer. O gajo furou-me o fígado, de certeza. É melhor morrer, assim o meu pai já não desatina comigo.
Aguenta-te, pá, eu vou ver se desenrasco isto.

Pegou no telefone.
Arnaldo, boa-noite, pá, pois é, desculpa ligar a esta hora, mas é uma emergência. Ainda trabalhas naquele armazém de peças... sim? Pois, olha, precisava de um vidro pára-brisas para o Rotaruki Tenerê . O quê? Vem de onde? Da Coreia? Não me lixes, Arnaldo. Vai tu, Arnaldo, vai tu!
O tio do Manel não parava, andava de cá para lá. Não... agora era uma questão de honra. Não ia deixar um moribundo de costelas partidas, um amigo do sobrinho, sangue do seu sangue, sem o mínimo de apoio.
Vai ser um risco, pá, eu não gosto de me meter nestas coisas, mas é uma emergência. Pega no telemóvel, desta vez. Tóni, estás porreiro? Continuas na merda, filho? Preciso de um material... Auto-rádios? Quem é que quer isso? Acorda! Onde andas tu? No Algueirão? Corre-me isso, pá, vê se me arranjas um pára-brisas de um Rotaruki Tenerê. Usa a cabeça, filho, usa essa mona impregnada em heroína, filho! E não me tragas um jipe inteiro que eu não quero problemas. Ouviste? Vê lá as companhias, também. Ah, estás com mais dois manfios? São teus primos? Melhor, eles dão-te uma mãozinha, que essa merda ainda é pesada.
Pelas cinco e quarenta da manhã, a Dinoficina recebia directamente das mãos do Tóni e dos seus dois primos um pára-brisas impecável, ainda com a caixinha da Via Verde colada, mais os selos costumeiros. Foi trabalho de Mauro e do amigo retirá-los e substitui-los pelos que tinham ficado agarrados aos fragmentos de vidro encontrados no chão do jipe. Ficou a brincadeira em cento e cinquenta euros (uma pechincha, segundo o tio de Manel João, e nem valia a pena discutir).

1 comentário:

  1. Amiga:
    Onde vais tu desencantar estes figurões??
    Delicioso!... Bons malandros, solidários e amigos do seu amigo. Sim senhor! Leitura recomendada a menores em crescimento,com necessidade de aprimorar atitudes e valores. Uma verdadeira cartilha parental- assim se afirmam caracteres e se constroem exemplos. Recomendo!!

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