sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Capítulo 2- Triste desdentada escura,
Quem me trouxe a tais mazelas!
Ó gengivas e arnelas,
Deitai babas de secura;
Carpi-vos, beiços coitados,
Que já lá vão meus toucados,
E a cinta e a mantilha…

Gil Vicente, Pranto de Maria Parda

Se o seu chefe adivinhasse que usava prótese havia dois anos, nunca poderia ter corrido ao Shopping de Cascais a comprar um casaco lindíssimo que estava em promoção. A pretexto de ir ao dentista ao princípio da tarde, escapou-se a queixosa, com a bochecha direita exageradamente retocada com blush, maquilhando o resultado de uma infecção. Já matara quase toda a família para poder usufruir de uns pequenos feriados, agora os estratagemas teriam de mudar. Havia a necessidade de inovar e com este maravilhoso pensamento atravessou o átrio da Câmara, cruzando-se com o senhor Almendro que, desde que solicitara uma licença de construção (havia três anos e dois meses), fazia, em vão, uma visita quinzenal à edilidade de Confins-de-Baixo.
Só respirou fundo quando se sentou no carro e com um toalhete eliminou a falsa bochecha febril. Respirou fundo, quando tocou o volante e uma flecha de remorso lhe atravessou a consciência: recusara emprestar o carro ao Miguel, o seu legítimo e fiel (???????) marido, aquele a quem jurara amar e respeitar, na saúde e na doença, tooooooooooooooooooodos os dias da sua vida. Que se lixe! Ele é homem, pode muito bem andar de comboio; os homens têm menos hipóteses de serem assaltados. E, depois, quem o mandou ir para Alfama com o jipe? Aliás, o que ele lá foi fazer é para mim um mistério.
Meteu-se no IC19, ligou o telefone e começou orientar o jantar.
D.Ana, comprou as costeletas? O quê? Não chegou como? Só deu para três? Mas somos cinco... Tanto pior, fazem-se uns ovos mexidos. Não, não faça esparregado! Carregue no puré de batata. Ainda há um resto de sopa no frigorífico...Já não? Comeu-a o Mauro ao almoço? Tanto pior! Em duas horas estou em casa. Se estou na Câmara? Onde queria que eu estivesse? O ruído é do computador. Estas máquinas não se dão com os telemóveis.
Ao chegar a Ranholas, o telefone tocou.
Por onde ando? Por onde quer a mãããee (pela entoação dada à palavra, tratava-se da sogra) que ande, com esta pilha de papéis à minha frente? Estou a precisar de reforma... Cansada destes serviços públicos... Sim. A Zezinha está em Lisboa por dois dias? Ah, quer ver-nos? Hoje? Jantar? Merda! Largou o telemóvel como se este estivesse a arder. A Brigada de Trânsito!
Tomou um ar pesaroso. Efectivamente estava ao telefone, senhor guarda. Tocou e eu atendi. Eu sei, eu sei que não devia, mas veja o senhor, a minha sogra teve um AVC há uma semana (quem dera que fosse verdade, assim não estaria agora em apuros, diabo da velha!), estou sempre à espera de notícias... (conseguiu deitar uma lágrima) e agora o meu marido ligou-me para me informar da sua morte, da dela, claro! Estava destroçado, coitadinho. O guarda olhou-a condescendentemente, coçou a orelha direita e disse algo sobre as atitudes pedagógicas da polícia. Deus lhe dê saúde, senhor guarda, boa tarde. Acelerou devagarinho em direcção ao Linhó, produzindo um grande suspiro ao passar em frente da prisão.
Finalmente no parque de estacionamento do Shopping.
Olha um lugar, olha um lugar! Ecoou uma buzina nas sombras do parque. De onde me saiu aquele, agora? Que está à espera há dez minutos... Desgraçado, a aproveitar-se de uma pobre mulher.
Começou o carrossel à procura de um espaço. Mas o que é que esta gentinha anda a fazer à hora de expediente? Palavra de honra que não entendo os horários de trabalho desta... finalmente um lugar... um pouco apertado à frente, mas serve. Desligou o carro, porém a porta do seu lado só abria dez centímetros. Não acredito! Passou para o lugar do lado e ficou com a meia presa na fivela da mala. Quando saiu do carro, uma malha imensa nascia num buraco acima do joelho e ameaçava desaguar já no tornozelo. Acelerou o passo, procurando a primeira loja onde pudesse comprar umas meias. A pressa levou-a a comprar uns collants demasiado pequenos, de forma que verificou enraivecida, no cubículo dos sanitários (nome das casas de banho em todos os centros comerciais…), que a extremidade superior das meias só tapava três quartos das nádegas e a inferior ficava a meia dúzia de centímetros do fundo das cuecas, o que lhe travava o passo. Felizmente, o casaco mantinha-se em promoção. Estava-lhe ligeiramente apertado, mas isso até era um incentivo à dieta. De quem teria eu herdado estas mamas, Nossa Senhora de Fátima? Sim, porque, na cintura, fica lindamente. Passados dez minutos já estava no saco o lindo casaquinho de promoção (399 Euros). O quê? perguntou-lhe Miguel. 399 Euros. O quê? 399 Euros. O quê? 399, estava com 35 por cento de desconto e escusas de estar para aí a tentares passar por poupado. Eu precisava de um casaquinho. Eu pergunto-te quanto é que gastas em bilhetes para ires ver o futebol? Hã? Para veres um clube que não ganha o campeonato há anos-luz, rodeado de broncos a comer sandes de coiratos e amendoins rançosos.
Desculpe, minha senhora! Eu sei que a senhora nasceu em berço de oiro, por isso devia ter casado com um príncipe, um PRÍN-CI-PE !
Num salto, o cão chegou à sala. Olhou para os donos, mas nenhum lhe ligou. Ia jurar que ouvira chamar pelo seu nome…

1 comentário:

  1. Irresistível!! E não me refiro só ao casaquinho.

    Polícias ingénuos,chefes lorpas,esposas virtuosas que Deus fez cair em em tentação... e até um Príncipe.
    Estou a divertir-me imenso, com esta comédia de costumes do século XXI.

    Continua!! Fico a aguardar novos capítulos
    bjinhos da Zé Capelão

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