António, anda comigo ao hiper! Despacha-te, tem de ser na hora de almoço.
Qual seria a pressa do pai? Encolheu os ombros, pegou na sua bolsa e pô-la a tiracolo.
Era a avó, ou melhor, o presente da avó. Tinha de ser um conjunto de ferro de viagem e secador de cabelo que ela lá tinha visto e que usaria contente num passeio com as amigas.
O jipe deu duas voltas ao primeiro piso do parque coberto. Está ali um! Não é um espaço para deficientes. Dois espaços para deficientes? Mas quantos deficientes… Este país terá assim tantos que justifique? Ah, finalmente! Merda, uma passadeira. Outra vez deficientes… Mas o que andam todos a fazer no hiper numa segunda-feira, à hora de almoço?
Num recanto, um carro fez marcha-atrás, voltou à frente, recuou de novo. Gajas ao volante! Quantas manobras precisa de fazer para tirar aquela amostra de carro dali?
É o pilar, pai! Há um pilar à esquerda.
Pilar, o caraças, pá! Lá vai ela, pronto!
Quando o jipe entrou, os faróis iluminaram uma porta metálica. ENTRADA E SAÍDA DE MERCADORIAS-PROIBIDO ESTACIONAR.
Que se lixe, só vamos demorar quinze minutos!
Correram para a loja, dirigindo-se à secção de pequenos electrodomésticos. Encontraram logo a caixinha com o conjunto de viagem. Espectáculo, António, menos de três minutos!
Posso ir comprar um CD gravável?
Claro! Ainda tinham tempo.
Entraram no inferno. Sons e imagens saltitavam psicadélicos, enlouquecendo os sentidos. Som dolby digital. Surround!
Sabes quando é que ouvi pela primeira vez o som surround? Quando vi o filme O Terramoto. Tinha a tua idade. Até as cadeiras estremeciam. Hoje, temos o surround em casa.
Fazem estremecer os candeeiros dos vizinhos.
As construções não prestam. Olha ali o DVD do TITANIC! Vou levar, a tua mãe vai agradecer-me… e o ÚLTIMO TANGO EM PARIS, um clássico.
É um musical?
Hã? Nada! Foi um estoiro quando estreou em Portugal. Vem num pacote pro-moção com o JESUS CRISTO SUPERSTAR. Levo? Levo, depois posso não encontrar.
Ouviu-se um pregão noutro sítio.
O que é isto? A feira dos enchidos. Vamos num instante, tenho de comprar umas morcelas para grelhar.
Seguiram o cheiro da carne fumada. Outro inferno –odores e música popular embriagavam os sentidos.
Pata Negra em promoção. Vou buscar um naco. Não gostas, António?
O António gostava, adorava, mas o ponteiro do relógio já avançara quinze minutos…
Está bem, vai andando para a caixa. Está ali uma só com uma pessoa.
A operadora de caixa sorriu: Tem cartão CompraContente? Não, não tinha. As compras iam deslizando pelo tapete. 180 Euros e trinta e dois cêntimos.
Entregou o cartão Multibanco, digitou o código. Acesso negado? Experimentou três vezes. Acesso negado.
Bem, o que será isto? Ainda há pouco paguei na bomba de gasolina e não houve problema.
Tentou uma quarta vez, franzindo a testa para o olhar dos clientes que se acumulavam impacientes.
Vou ligar ao banco. Não pode suspender a compra para não empatar?
Poder posso…a rapariga mostrou-se contrariada.
António disfarçou, observando as lojas do centro comercial
Está, Antunes? Estás porreiro? Ó pá, estou numa situação chata. Vim às compras e não consigo pagar com o cartão. O número? 2500532827. O quê? Ai, não? Ouve, ó Antunes, não me podes desenrascar 200 euros para liquidar isto? Já sabes que não há problemas (em voz mais baixa) com os juros. Obrigado, pá! Tenho que esperar dez minutos? OK, obrigadinho, pá. Um abraço! Voltou-se para a empregada: Sabe o que é? Paguei a minha viagem à Sierra Nevada e levantaram-me o cheque antes da data combinada.
Quando o problema ficou resolvido, correram para o jipe.
Ó pai, não sabia que íamos para a Sierra Nevada!
Nem eu! Mas o que é que aquela gaja tinha a ver com as minhas contas?
Isso ainda lhe sai caro!
Porquê? És tu que pagas? Quem é que trabalha?
Sim, mas… ó pai, o jipe estava no -2?
Sim, -2 azul C12. Tenho boa memória!
Não!
Não tenho?
Não está! Desapareceu.
Então, se calhar, está no -1.
Subiram as escadas a correr e verificaram que, naquele piso, os pilares estavam pintados de vermelho e de verde.
Roubaram-me o carro! Não acredito! Isto há-de ter um guarda! Está aí alguém? Ó senhor!
Um jipe Teneré? Vi. Acabaram mesmo de rebocá-lo.
O parque dos tristes rebocados ficava longe, pelo que tiveram de apanhar um táxi. O António perdeu as duas primeiras aulas e Miguel ficou branco quando tentou pagar a multa com o Multibanco e não conseguiu. Por sorte, a mulher tinha prolongado a hora de almoço para fazer umas compras ali perto. O preço da multa dava para comprar metade de uma pata negra…
As compras nos hipermercados cansam qualquer homem, sobretudo quando o cartão de plástico começa a perder a cor. O telemóvel tocou.
Sou eu, filho!
Oh, D.Maria Alice, que tarde desgraçada!
Sabes que cartas do Tarot saíram para ti? O Eremita, a Morte e o Louco.
E…
Corres risco de suicídio! Era só para te avisar! Não queiras deixar a minha filha viúva.
terça-feira, 9 de fevereiro de 2010
segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010
Capítulo 9-cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,
cão de olhos que afligem,
cão-problema...
Sai depressa, ó cão, deste poema!
Alexandre O'Neill
Nasci numa quinta de um amigo de Miguel. Pertencia a uma ninhada de seis e ainda nem brincava, quando me vieram buscar. Aconchegado num cobertorzinho desbotado, nos braços de António, fui baptizado de Príncipe. Nesse dia, percebi que havia mais mundo para além do caixote onde acordara para a vida, debaixo das lambidelas da minha mãe, a cadela Tora. A família Almeida adoptara-me facilmente, numa época em que era moda ter um boxer.
Gozei a minha infância até ao tutano, roendo sapatos, cabos eléctricos, o tarot de uma avó, a dentadura da outra, o batom preferido de Sandra, o telemóvel de Mauro… não havia jornal que me educasse, nem chinelo que me emendasse.
Foi deste modo que aprendi a ler o suplemento de Economia e a especializar-me em Finanças. Suponho que, nas redondezas, não haja mais nenhum cão que o faça, o que me traz em permanente estado depressivo por não poder trocar impressões com ninguém. Assim, tive crises de uivos permanentes que me atiraram para o divã de um psicólogo de animais, duas vezes por mês durante um ano, no consultório do qual esperava impaciente a minha vez, entre uma jibóia albina claustrófoba e um papagaio que mergulhara numa tristeza sem fim quando os donos o esqueceram em frente à TV que transmitia os debates da assembleia sobre o estado da nação. Ia pela mão do Mauro ou da Sandra, de trela tristemente pendida, em passo lento, desprezando até os postes mais fedorentos do caminho.
Um dia, acordei e surpreendentemente já não sentia aquele aperto no estômago. A única coisa que me surgia na memória era a imagem fulgurante da Betsy, a cadelinha do 34. Estes ataques só me passaram ao aperceber-me da sua existência, ao passear à noite com a mãe, uma velha boxer babosa que tem artroses na anca. Uma destas noites, quando regava a base de um outdoor com propaganda eleitoral já esquecida, vi a Betsy ao longe, atrás do presépio do parque dos Plátanos. Não era possível! A Betsy a fazer o seu chichi entre a vaquinha e o S.José.
Não é possível,Betsy!
Teve que ser mesmo aqui, Príncipe. Tu sabes como eu adoro ouvir o líquido a escorrer pelo metal das sarjetas, mas não fui a tempo. Acreditas em mim?
Oh, Betsy!
Oh, Príncipe!
Oh, Betsy, Betsy!
E foi mesmo ali, perante o olhar esgazeado do burro que tudo aconteceu. Olhei o cenário desta minha cena e aproximei-me do Menino, ganindo baixinho desculpas de cão desavergonhado. O Bebé manteve os bracinhos enregelados virados para o céu e não parou de sorrir.
E, pronto, adeus taxas de juro iô-iô, contas públicas tenebrosas, défice incontrolável, crise mundial aguda. O bom do Príncipe voltara a eu mesmo. Eu era outra vez o boxer traquinas e espertalhão. Resolvi comemorar, comendo os bifes do jantar que descongelavam sobre a bancada da cozinha. Carreguei com a pata no pedal e depositei ecologicamente a embalagem de plástico bem lambida no caixote amarelo da reciclagem. Fui de tal maneira eficiente que a minha dona chegou a duvidar da existência da carne.
Como genuíno cão que sou, adoro todas os meus donos, mas tenho uma predilecção pelo António, o único que fala comigo como se eu fosse gente. E eu oiço-o atentamente, ora de orelha caída ora de orelha arrebitada, oscilando lateralmente a cabeça e babando-me sempre. Tudo o que faço tem consequências positivas. Até o osso de borracha, que consegui enfiar naquela terrina de loiça onde eles fazem chichi, nos trouxe, pela mão do canalizador, a família russa que salvou esta casa do caos doméstico, reanimando a qualidade das refeições e da limpeza. O que não faço ou o que tem geralmente consequências negativas é-me atribuído injustamente. Qualquer objecto que desapareça nesta casa de loucos é o Príncipe que esconde. Não é verdade! A única maldade que faço é tirar do saco do Expresso o suplemento económico e enfiá-lo imediatamente no recipiente azul para que ninguém adoeça como eu. E nem os aborreço uivando ,quando olham para a televisão, embevecidos perante a imagem do primeiro ministro eleito com o seu voto.
Este homem é chiquíssimo. Olhem só para a forma como lhe assenta o fato! É impecável, podia até ser um actor de cinema. Impossível! Até a Betsy diz que gostava de tê-lo como dono, que lhe lembra o homem da publicidade às máquinas de expresso com cápsulas. Como dizem os Yorkshire Terrier do 53: Disgusting!
cão-problema...
Sai depressa, ó cão, deste poema!
Alexandre O'Neill
Nasci numa quinta de um amigo de Miguel. Pertencia a uma ninhada de seis e ainda nem brincava, quando me vieram buscar. Aconchegado num cobertorzinho desbotado, nos braços de António, fui baptizado de Príncipe. Nesse dia, percebi que havia mais mundo para além do caixote onde acordara para a vida, debaixo das lambidelas da minha mãe, a cadela Tora. A família Almeida adoptara-me facilmente, numa época em que era moda ter um boxer.
Gozei a minha infância até ao tutano, roendo sapatos, cabos eléctricos, o tarot de uma avó, a dentadura da outra, o batom preferido de Sandra, o telemóvel de Mauro… não havia jornal que me educasse, nem chinelo que me emendasse.
Foi deste modo que aprendi a ler o suplemento de Economia e a especializar-me em Finanças. Suponho que, nas redondezas, não haja mais nenhum cão que o faça, o que me traz em permanente estado depressivo por não poder trocar impressões com ninguém. Assim, tive crises de uivos permanentes que me atiraram para o divã de um psicólogo de animais, duas vezes por mês durante um ano, no consultório do qual esperava impaciente a minha vez, entre uma jibóia albina claustrófoba e um papagaio que mergulhara numa tristeza sem fim quando os donos o esqueceram em frente à TV que transmitia os debates da assembleia sobre o estado da nação. Ia pela mão do Mauro ou da Sandra, de trela tristemente pendida, em passo lento, desprezando até os postes mais fedorentos do caminho.
Um dia, acordei e surpreendentemente já não sentia aquele aperto no estômago. A única coisa que me surgia na memória era a imagem fulgurante da Betsy, a cadelinha do 34. Estes ataques só me passaram ao aperceber-me da sua existência, ao passear à noite com a mãe, uma velha boxer babosa que tem artroses na anca. Uma destas noites, quando regava a base de um outdoor com propaganda eleitoral já esquecida, vi a Betsy ao longe, atrás do presépio do parque dos Plátanos. Não era possível! A Betsy a fazer o seu chichi entre a vaquinha e o S.José.
Não é possível,Betsy!
Teve que ser mesmo aqui, Príncipe. Tu sabes como eu adoro ouvir o líquido a escorrer pelo metal das sarjetas, mas não fui a tempo. Acreditas em mim?
Oh, Betsy!
Oh, Príncipe!
Oh, Betsy, Betsy!
E foi mesmo ali, perante o olhar esgazeado do burro que tudo aconteceu. Olhei o cenário desta minha cena e aproximei-me do Menino, ganindo baixinho desculpas de cão desavergonhado. O Bebé manteve os bracinhos enregelados virados para o céu e não parou de sorrir.
E, pronto, adeus taxas de juro iô-iô, contas públicas tenebrosas, défice incontrolável, crise mundial aguda. O bom do Príncipe voltara a eu mesmo. Eu era outra vez o boxer traquinas e espertalhão. Resolvi comemorar, comendo os bifes do jantar que descongelavam sobre a bancada da cozinha. Carreguei com a pata no pedal e depositei ecologicamente a embalagem de plástico bem lambida no caixote amarelo da reciclagem. Fui de tal maneira eficiente que a minha dona chegou a duvidar da existência da carne.
Como genuíno cão que sou, adoro todas os meus donos, mas tenho uma predilecção pelo António, o único que fala comigo como se eu fosse gente. E eu oiço-o atentamente, ora de orelha caída ora de orelha arrebitada, oscilando lateralmente a cabeça e babando-me sempre. Tudo o que faço tem consequências positivas. Até o osso de borracha, que consegui enfiar naquela terrina de loiça onde eles fazem chichi, nos trouxe, pela mão do canalizador, a família russa que salvou esta casa do caos doméstico, reanimando a qualidade das refeições e da limpeza. O que não faço ou o que tem geralmente consequências negativas é-me atribuído injustamente. Qualquer objecto que desapareça nesta casa de loucos é o Príncipe que esconde. Não é verdade! A única maldade que faço é tirar do saco do Expresso o suplemento económico e enfiá-lo imediatamente no recipiente azul para que ninguém adoeça como eu. E nem os aborreço uivando ,quando olham para a televisão, embevecidos perante a imagem do primeiro ministro eleito com o seu voto.
Este homem é chiquíssimo. Olhem só para a forma como lhe assenta o fato! É impecável, podia até ser um actor de cinema. Impossível! Até a Betsy diz que gostava de tê-lo como dono, que lhe lembra o homem da publicidade às máquinas de expresso com cápsulas. Como dizem os Yorkshire Terrier do 53: Disgusting!
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